23/08/201605h35
Paula Sperb
Da BBC Brasil, em Porto Alegre
Da BBC Brasil, em Porto Alegre
O agricultor Atílio Marques da Rosa, de 76 anos, andava de moto quando
sentiu uma forte tontura e caiu na frente de casa em Braga, uma cidadezinha de
menos de 4 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul.
"A tontura reapareceu depois, e os exames mostraram o câncer",
conta o filho Osmar Marques da Rosa, de 55 anos, que também é agricultor.
Seu Atílio foi diagnosticado há um ano com um tumor na cabeça,
localizado entre o cérebro e os olhos. Por causa da doença, já não trabalha em
sua pequena propriedade, na qual produzia milho e mandioca.
Para ele, o câncer tem origem: o contato com agrotóxicos, produtos
químicos usados para matar insetos ou plantas dos quais o Brasil é líder
mundial em consumo desde 2009.
Meu pai acusa muito esse negócio de
veneno. Ele nunca usou, mas as fazendas vizinhas sempre pulverizavam a soja com
avião e tudo
O noroeste gaúcho, onde seu Atílio mora, é campeão nacional no uso de
agrotóxicos, segundo um mapa do Laboratório de Geografia Agrária da USP,
elaborado a partir de dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística).
Para especialistas que lidam com o problema localmente, não há dúvidas
sobre a relação entre o veneno e a doença.
"Diversos estudos apontam a
relação do uso de agrotóxicos com o câncer", diz o oncologista Fábio
Franke, coordenador do Centro de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon) do
Hospital de Caridade de Ijuí, que atende 120 municípios da região.
Um dos principais problemas é que boa parte dos trabalhadores não segue
as instruções técnicas para o manejo das substâncias.
"Nós sempre perguntamos se usam proteção, se usam equipamento. Mas
atendemos principalmente pessoas carentes. Da renda deles não sobra para
comprar máscaras, luvas, óculos. Eles ficam expostos", diz Emília Barcelos
Nascimento, voluntária da Liga Feminina de Combate ao Câncer de Ijuí.
Anderson Scheifler, assistente social da Associação de Apoio a Pessoas
com Câncer da cidade (Aapecan), corrobora: "Temos como relato de vida
dessas pessoas um histórico de utilização excessiva de defensivos agrícolas e,
na maioria das vezes, sem uso de proteção".
'Alarmante
epidemia'
Um estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
comparou o número de mortes por câncer da microrregião de Ijuí com as
registradas no Estado e no país entre 1979 e 2003 e constatou que a taxa de
mortalidade local supera tanto a gaúcha, que já é alta, como a nacional.
De acordo com o Inca (Instituto Nacional de Câncer), o Rio Grande do Sul
é o Estado com a maior taxa de mortalidade pela doença. Em 2013, foram 186,11
homens e 140,54 mulheres mortos para cada grupo de 100 mil habitantes de cada
sexo.
O índice é bem superior ao registrado pelos segundos colocados, Paraná
(137,60 homens) e Rio de Janeiro (118,89 mulheres).
O Estado também é líder na estimativa de novos casos de câncer neste
ano, também elaborada pelo Inca - 588,45 homens e 451,89 mulheres para cada 100
mil pessoas de cada sexo.
Em 2014, 17,5 mil pessoas morreram de câncer em terras gaúchas - no país
todo, foram 195 mil óbitos.
Anualmente, cerca de 3,6 mil novos pacientes são atendidos na unidade
coordenada por Franke. Se incluídos os antigos, são 23 mil atendimentos.
Destes, 22 mil são bancados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) - os cofres
públicos desembolsam cerca de R$ 12 milhões por ano para os tratamentos.
Segundo o oncologista, a maioria dos doentes vem da área rural - mas o
problema pode ser ainda maior, já que os malefícios dos agrotóxicos não ocorrem
apenas por exposição direta pelo trabalho no campo, mas também via alimentação,
contaminação da água e ar.
"Se esses números fossem de pacientes de dengue ou mesmo uma
simples gripe, não tenho dúvida de que a situação seria tratada como a mais
alarmante epidemia, com decreto de calamidade pública e tudo. Mas é câncer. Há
um silêncio estranho em torno dessa realidade", afirma o promotor Nilton
Kasctin do Santos, do Ministério Público da cidade de Catuípe.
"Milhares de pessoas estão morrendo de câncer por causa dos
agrotóxicos", acrescenta ele, que atua no combate aos produtos.
Procurado pela BBC Brasil, o Sindiveg (Sindicato Nacional da Indústria
de Produtos para Defesa Vegetal), que representa os fabricantes de agrotóxicos,
encaminhou o questionamento para a Andef (Associação Nacional de Defesa
Vegetal), que responde basicamente pelas mesmas empresas.
Em nota, a Andef afirma que "toda substância química, sintetizada
em laboratório ou mesmo aquelas encontradas na natureza, pode ser considerada
um agente tóxico" e que os riscos à saúde dependem "das condições de
exposição, que incluem: a dose (quantidade de ingestão ou contato), o tempo, a
frequência etc.".
O texto afirma ainda que "o setor de defensivos agrícolas apresenta
o grau de regulamentação mais rígido do mundo".
Salto no consumo
A comercialização de agrotóxicos aumentou 155% em dez anos no Brasil,
apontam os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (IDS), estudo elaborado
pelo IBGE no ano passado - entre 2002 e 2012, o uso saltou de 2,7 quilos por
hectare para 6,9 quilos por hectare.
O número é preocupante, especialmente porque 64,1% dos venenos aplicados
em 2012 foram considerados como perigosos e 27,7% muito perigosos, aponta o
IBGE.
O Inca é um dos órgãos que se posicionam oficialmente "contra as
atuais práticas de uso de agrotóxicos no Brasil" e "ressalta seus
riscos à saúde, em especial nas causas do câncer".
Como solução, recomenda o fim da pulverização aérea dos venenos, o fim
da isenção fiscal para a comercialização dos produtos e o incentivo à
agricultura orgânica, que não usa agrotóxico para o cultivo de alimentos.
Márcia Sarpa Campos Mello, pesquisadora do instituto e uma das autoras
do "Dossiê Abrasco - Os impactos dos Agrotóxicos na Saúde", ressalta
que o agrotóxico mais usado no Brasil, o glifosato - vendido com o nome de
Roundup e fabricado pela Monsanto - é proibido em toda a Europa.
Segundo ela, o glifosato está relacionado aos cânceres de mama e
próstata, além de linfoma e outras mutações genéticas.
"A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que 80% dos casos de
câncer são atribuídos à exposição de agentes químicos. Se os agrotóxicos também
são esses agentes, o que já está comprovado, temos que diminuir ou banir
completamente esses produtos", defende.
A Monsanto, entretanto, rechaça a opinião. Procurada pela BBC Brasil, a
empresa afirma que o registro do glifosato na União Europeia foi renovado por
18 meses, em junho.
A renovação, porém, não passou sem polêmica. A intenção inicial era que
a renovação fosse por 15 anos. França, Itália, Suécia e Países Baixos foram
contra. Um dos motivos é a recente classificação da Agency for Research on
Cancer (IARC), parte da Organização Mundial da Saúde, que classificou o
glifosato como "provavelmente cancerígeno para humanos".
Três vezes mais
Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o
brasileiro consome até 12 litros de agrotóxico por ano.
A bióloga Francesca Werner Ferreira, da Aipan (Associação Ijuiense de
Proteção ao Ambiente Natural) e professora da Unijuí (Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul), alerta que a situação é ainda pior no
noroeste gaúcho, onde o volume consumido pode ser três vezes maior.
Ela conta que produtores da região têm abusado das substâncias para
secar culturas fora de época da colheita e, assim, aumentar a produção. É o
caso do trigo, que recebe doses extras de glifosato, 2,4-D, um dos componentes
do "agente laranja", usado como arma química durante a Guerra do
Vietnã, e paraquat.
Segundo o promotor Nilton Kasctin do Santos, este último causa necrose
nos rins e morte das células do pulmão, que terminam em asfixia sem que haja a
possibilidade de aplicação de oxigênio, pois isso potencializaria os efeitos da
substância.
"Nada disso é invenção de palpiteiro, de ambientalista de esquerda
ou de algum cientista maluco que nunca tomou sol. Também não é invenção de
algum inimigo do agronegócio. Sabe quem diz tudo isso sobre o paraquat? O
próprio fabricante. Está na bula, no rótulo", alerta o promotor.
No último ano, 52 pessoas morreram por intoxicação por paraquat em
terras gaúchas, segundo o Centro de Informação Toxicológica do Estado.
No Brasil, 1.186 mortes foram causadas por intoxicação por agrotóxico de
2007 a 2014, segundo a coordenadora do Laboratório de Geografia Agrária da USP,
Larissa Bombardi.
A estimativa é que para cada registro de intoxicação existam outros 50
casos não notificados, afirma ela. A pesquisa da professora aponta ainda que
300 bebês de zero a um ano de idade sofreram intoxicação no mesmo período.
A Syngenta, fabricante do paraquat, não se manifestou sobre os casos de
intoxicação e afirmou endossar o posicionamento da Andef