Recusar tratamentos fúteis e degradantes em casos de doenças graves e
terminais é um direito, pouco conhecido e aceito, do paciente
Por Ana Claudia Arantes
access_time27 out 2017, 18h38 - Publicado em 27
out 2017, 12h00
http://veja.abril.com.br/blog/letra-de-medico/a-verdade-sobre-recusar-tratamentos-futeis-de-doencas-incuraveis/
Você tem câncer, daqueles considerados os mais graves e agressivos. Não há a menor possibilidade de cura. Nem rezando. Você diz que
não quer continuar mais a ser torturado com remédios que te deixam com uma
fadiga mortal, te fazem vomitar mais de dez vezes no dia, deixam suas mãos e
pés queimando como em brasa e ao mesmo tempo formigando.
Você não
tem mais forças para trabalhar e está começando a ficar difícil tomar banho
sozinho. Não dorme por causa da dor que não passa com os remédios que te deram
para tomar. Não sabe mais qual o sabor da comida, aliás, você talvez nem tenha
fome e emagrece todo dia um pouco mais. Não há mais como encontrar dinheiro
para pagar as consultas, os exames, as despesas com transporte e sua família já
está indo a falência sem ter a sua ajuda financeira, já que você não consegue
mais trabalhar. Seu cabelo ralo, sua pele cor de cinzas, sua barriga que
cresce, seu cansaço que aumenta.
Tudo te leva a refletir que não
existe sentido em continuar com um tratamento que só está te oferecendo muito,
mas muito sofrimento. Mas você pode dizer ao seu
oncologista que não quer mais? Sim.
A importância dos cuidados paliativos
Você é a pessoa que mais tem
capacidade de decisão sobre o que considera digno e pertinente ao seu
tratamento. Mas talvez você precise ter paciência com a medicina brasileira de
modo geral, pois ainda não chegou ao conhecimento de todos os profissionais da
saúde que tratam de pessoas com câncer o que há de mais moderno no tratamento
desta doença tão devastadora: cuidados paliativos.
Nos nossos dias, em pleno curso
de 2017, tivemos a noticia: TODOS OS PACIENTES COM CÂNCER – INOPERÁVEL OU COM
METÁSTASES DEVEM RECEBER CUIDADOS PALIATIVOS JÁ AO DIAGNÓSTICO. A medicina
descobriu, através de estudos totalmente baseados em evidências indiscutíveis:
quem recebe cuidados paliativos chega a viver CINCO MESES a mais do
que os pacientes que apenas recebem tratamentos contra o câncer que não
controlam seus sintomas de sofrimento – (Estudo ENABLE III – Educate, Nurture,
Advise, Before Life Ends – 2015).
E mais: se os cuidados paliativos
forem oferecidos precocemente, a chance de resposta do
tratamento do câncer aumenta em 15%. Além de tudo isso, a qualidade
de vida é maior, o índice de depressão é menor, o respeito aos seus valores, o
apoio incondicional aos seus familiares, a menor incidência de intervenções
agressivas e torturadoras nos seus últimos tempos de vida levou os
pesquisadores a recomendarem este cuidado a todos os pacientes com câncer.
Conceito pouco conhecido na medicina brasileira
Mas temos um problema
extremamente grave no nosso país: muitos profissionais de saúde, desde os que
trabalham em pronto socorro de hospital publico até aqueles que são
reconhecidos como referências nacionais pensam que cuidados paliativos
é não fazer nada e que recomendar esta assistência acelera a
morte do paciente, mas isso é uma absoluta mentira.
Profissionais
de saúde que jamais se debruçaram sobre qualquer informação de qualidade a
respeito do tema, nunca fizeram nenhuma formação, nenhum tipo de estudo, nenhuma
especialização reconhecida. Mal sabem como tratar a dor corretamente. Há quem
se intitule geriatra por ter uma agenda cheia de pessoas idosas para atender.
Mas nunca fizeram nenhuma especialização técnica na área. Eu costumo fazê-los
refletir dizendo a caixa preferencial do banco só atende idosos, mas não se
tornou geriatra por isso.
Tratamentos fúteis e degradantes
Assim é
com cuidados paliativos: atender pessoas que morrem não transforma o
profissional de saúde em alguém habilitado e capaz de lidar com o sofrimento
humano que o fim da vida produz. Por isso, no caso que descrevo acima o mais
comum é levar o paciente a fazer inumeráveis linhas de tratamento até seu
último suspiro justificando que se está “lutando” pela vida dele.
Já ouvi histórias macabras de
pessoas que morreram DURANTE a infusão de quimioterapia ou foram obrigadas a
serem transportadas até a radioterapia agônicas e morreram na maca recebendo a
radiação. Alguns me dizem que assim é lutar pela vida até o último minuto. Mas
eu digo que assim é morrer errado.
Está errado tecnicamente obrigar
um paciente e sua família a serem submetidos a qualquer tratamento degradante e fútil, que não muda em
praticamente nada a chance de morte. Utilizar recursos de coação do tipo: mas
você quer desistir de viver ou acusar os familiares de tentarem acelerar a
morte de seu ente querido deveria ser crime hediondo, mas não é. Pacientes e
seus familiares que recusam estes tratamentos são julgados e condenados como
pessoas incapazes de decidir sobre o que é melhor para sua vida.
Marcelo Rezende e Steve Jobs
O maior exemplo disso atualmente
foi o caso de Marcelo Rezende. Por ter recusado um tratamento
dito convencional que não traria a ele nenhuma chance de cura foi duramente
criticado, citado como exemplo do erro, da falta de coragem de tratar um câncer
que todos sabiam ser incurável e extremamente agressivo, inclusive o próprio
paciente. Foi criticado publicamente inclusive por médicos que talvez sofram
muito por ter tanta dificuldade de saber o que fazer diante de um paciente que
os questiona sobre as intenções de um tratamento sem resultado satisfatório
para eles.
Quando o
paciente diz que valoriza suas crenças religiosas ele está representando 80% da
população brasileira (Kaiser/Economist Survey Highlights Americans’ Views and
Experiences with End-of-Life Care, With Comparisons to Residents of Italy,
Japan and Brazil, 2017) – que assume sem nenhum pudor que sua fé tem grande
influência sobre suas decisões de saúde.
E os
médicos e outros profissionais de saúde que tratam de pessoas com doenças
graves e que se furtam a aprender e valorizar a espiritualidade e conhecer
todos os aspectos relevantes da religião de seus pacientes em geral chegam a
cometer graves erros com sua palavra mal utilizada. Desvalorizar a espiritualidade
na população brasileira é o mesmo que abrir mão do recurso mais poderoso a
favor da saúde de seu paciente e de sua adesão ao tratamento.
Os
dilemas discutidos no caso do Marcelo Rezende dizem respeito principalmente à
urgência que temos na formação técnica consolidada em cuidados paliativos no
nosso país. Não tenho dúvida alguma que se este paciente tivesse tido alguma
chance de escolha pela sua dignidade seguindo a medicina de mais alta qualidade
dentro da prática de cuidados paliativos, evitando os tais tratamentos não
convencionais que oneram tanto quanto o uso de quimioterápicos e outras drogas
novas com baixíssima chance de resposta, ele teria seguido sua biografia em
direção ao dia de sua morte com mais valor e significado de vida e de sua família.
Para quem ainda não sabe, Marcelo
Rezende, Steve Jobs e milhares de pessoas que escolhem não
tratar uma doença incurável escolhendo a qualidade de vida que os cuidados de
conforto permitem não morreram por não aceitarem receber
tratamentos fúteis apesar de convencionais. Eles morreram de câncer.