Terapias genéticas inovadoras prometem um cenário cada vez mais otimista na luta contra tumores malignos, mas ainda estão longe de significar a cura da doença. Entenda
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MARÍLIA MARASCIULO
30 ABR 2020 - 13H27 ATUALIZADO
EM 30 ABR 2020 - 13H27
Se o corpo humano fosse um castelo em guerra contra a invasão e
disseminação de células cancerígenas, os tradicionais métodos de combate — a
quimioterapia, a radioterapia ou a cirurgia — seriam o equivalente a uma
bazuca: até conseguem eliminá-las, mas podem provocar danos irreparáveis à
estrutura do castelo. Como se não bastasse, é difícil saber exatamente por onde
os invasores tentarão entrar para ganhar o controle do castelo — enquanto a
mira está na porta, pode ter outra tropa prestes a entrar pela janela.
Mas, nos últimos anos, um novo campo de estudo da medicina começou a
mudar este cenário. Na chamada oncologia de precisão, desenvolvida a partir dos
anos 2000, saem as bazucas e entram os snipers. A ideia é saber exatamente
quando, como e onde atacar o tumor para ter os melhores resultados com os
menores efeitos colaterais. Uma das estratégias mais promissoras é a das
terapias genéticas. Como o nome sugere, elas miram nas mutações genéticas das
células defeituosas para eliminá-las.
Para
entender como os novos tratamentos funcionam, é preciso compreender o que é e
como surgem os tumores malignos, ou câncer,
termo que engloba um conjunto de mais de 100 doenças causadas pelo crescimento
desordenado das células. Em nosso corpo, existem 10 trilhões delas, e no DNA de
cada uma existem instruções de como devem crescer e se multiplicar.
Às vezes,
pequenas mutações podem alterar essas ordens — em geral, o sistema imunológico consegue
identificar as falhas e eliminá-las antes que se espalhem. Mas isso nem sempre
acontece: nossa imunidade tem
mecanismos para evitar reações exageradas que podem ser prejudiciais ao
organismo. E o câncer se aproveita justamente disso, seja se escondendo dessas
defesas, seja usando táticas para enganá-las e inibir um ataque. Assim, as
células defeituosas se proliferam e replicam as informações erradas, crescendo
desenfreadamente e invadindo os tecidos e órgãos.
A primeira
geração dessas novas estratégias de combate ao câncer são as terapias-alvo.
Trata-se de um ataque às moléculas essenciais para o funcionamento das células
cancerígenas, freando sua expansão. A ideia é antiga: o bacteriologista alemão
Paul Ehrlich, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina em 1908, já havia sugerido
naquela época a possibilidade de desenvolver um remédio que combatesse os
mecanismos específicos de doenças infecciosas. Mas foi só a partir de 2000 que
tais remédios se tornaram realidade — não para infecções, e sim na luta contra
contra o câncer.
A ideia é
atacar células específicas de tumores específicos. Por exemplo: existem
diferentes tipos de mutações para câncer de mama,
e a terapia foca em uma delas. Portanto, não serve para todos os pacientes. Por
serem extremamente precisos, têm taxa de resposta alta e menos efeitos
colaterais. O problema é que o tratamento depende de um “match” perfeito, e nem
todo tumor tem o alvo ou a mutação específica para as quais os medicamentos
funcionam.
Atualmente, existem terapias-alvo disponíveis para câncer de pulmão,
tireóide, rim, pele, melanoma, sarcoma, fígado, cólon, reto, ovário, mama e
leucemias e linfomas. No entanto, elas costumam ser mais recomendadas somente
para esses três últimos tipos de câncer.
Quando
o corpo é o melhor remédio
Um passo à frente da terapia-alvo, a imunoterapia usa
nossas próprias células de defesa contra o câncer. É mais um método que, embora
tenha evoluído só nos últimos cinco anos, vem sendo testado há pelo menos 100
anos.
Tudo começou no século 19, com o cirurgião americano William Coley. Ao
observar que uma vítima de câncer se curou após uma grave infecção, ele
desenvolveu a teoria de que, se super ativado, nosso sistema imunológico seria
capaz de acabar com um tumor. O cirurgião chegou a fazer experimentos
infectando propositalmente pacientes com câncer, sem sucesso.
Os anos
passaram e os cientistas descobriram que a teoria de Coley não estava
incorreta. Os maiores responsáveis por provar isso foram os imunologistas James
P Allison, dos Estados Unidos, e Tasuku Honjo, do Japão, que venceram o Prêmio Nobel
de Medicina em 2018 pela descoberta. Eles mostraram que é
possível, sim, estimular o sistema imunológico para combater as células
cancerígenas: basta bloquear o mecanismo utilizado por elas para enganar nossas
defesas. Ele consiste na liberação de proteínas que se encaixam em receptores
dos linfócitos T — o “cérebro dinâmico” do sistema imunológico e o responsável
por reconhecer a célula danificada e emitir a ordem para que outras células a
destruam — e bloqueiam o sinal de alerta.
Os remédios imunoterápicos atuam impedindo a liberação dessas proteínas
ou obstruindo os receptores dos linfócitos T. Sem serem enganados, eles comandam
o ataque. Apesar de também provocar efeitos colaterais, o método é menos
agressivo e mais eficaz que os tratamentos tradicionais.
Super-heróis
feitos sob medida
Dentro da imunoterapia, um método ainda mais moderno e inovador tem sido
desenvolvido. O tratamento com as chamadas células CAR-T consiste na
modificação genética em laboratório dos linfócitos T para que desenvolvam um
receptor capaz de identificar as células tumorais. “Eles se transformam em
super-heróis direcionados para o câncer”, exemplifica o oncologista Bernardo
Garicochea, membro do Comitê de Oncogenômica da Sociedade Brasileira de
Oncologia Clínica (SBOC). Os linfócitos são então reinseridos no corpo do
paciente para realizarem a missão.
Parece
coisa de ficção científica, mas o tratamento já foi aprovado nos Estados Unidos
para casos raros de câncer de sangue (linfomas e leucemia)
resistentes aos métodos tradicionais. No fim de 2019, foi testado pela primeira
vez na América Latina por pesquisadores brasileiros.
Feito na modalidade de tratamento compassivo, que permite o uso de
terapias não aprovadas no país em casos graves sem outras opções disponíveis, o
teste ampliou a expectativa de sobrevida de um paciente que sofria com linfoma
não Hodgkin. Além disso, reduziu os sintomas clínicos e a necessidade de
remédios para dor. E o método desenvolvido por aqui custa bem menos que o
oferecido nos Estados Unidos — R$ 150 mil, em vez dos US$ 400 mil (mais de R$ 2
milhões) necessários por lá.
Entusiasmo
cauteloso
O alto custo não é o único desafio para esses novos tipos de terapias, nem o
mais difícil de se contornar: no Brasil, por exemplo, fica levemente acima do
valor de um transplante de medula óssea (R$ 110 mil é o repasse do SUS). Há
também a expectativa de que os preços diminuam à medida em que os tratamentos
se tornem disponíveis para mais gente.
A parte mais complicada é identificar as mutações ou particularidades
que possam ser usadas como alvos, na visão de especialistas. “São muitos passos
até desvendar o quebra-cabeça de um tumor”, diz o oncologista Ramon Andrade de
Mello, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e consultor
científico da Escola Europeia de Oncologia.
Mello é o
responsável por uma pesquisa para sequenciar o código genético dos tumores de
pacientes não fumantes com câncer de pulmão.
“Nós queremos identificar quais os genes mais responsáveis pelo câncer e, a
partir disso, desenvolver medicamentos que inibam esses genes”, explica de
Mello, que acredita que a pesquisa deve durar dez anos. O desafio é que os
tumores no pulmão de pessoas que não fumam são minoria: entre os 1,5 milhão de
casos de câncer de pulmão diagnosticados a cada ano no mundo apenas 15% se dão
entre não fumantes.
Na
explicação de Garicochea, para identificar todos os possíveis alvos, seria
necessário um atlas do genoma humano e dos tumores para compará-los, e entender
o que está errado. Uma tentativa neste sentido foi divulgada em fevereiro
deste ano, na revista Nature. Durante uma década,
1,3 mil pesquisadores do consórcio Pan-Cancer Analysis of Whole Genomes, mais
conhecido como Pan-Cancer, analisaram 2,6 mil tumores de 38 tipos de câncer.
Eles mapearam o genoma destes tumores e apontaram quais falhas no DNA levaram
ao desenvolvimento da doença.
Entre as
descobertas que mais chamaram a atenção são as diferenças entre o câncer de um
paciente e outro, e a interrelação entre os diferentes genes. “Existe
comunicação cruzada dentro do próprio tumor, a chamada cross-talk, então às vezes quando você descobre como
consertar uma pecinha [do quebra-cabeça], o danado vem e
desmancha outra para atrapalhar”, diz o oncologista da Unifesp.
Esses são alguns dos motivos pelos quais os cientistas são receosos em
anunciar as terapias como potenciais curas para o câncer. “Elas não são a
salvação da pátria, são mais um passo dessa caminhada, vão falhar em muitos
pacientes, vão curar algumas vidas, nós vamos aprender a melhorá-las e aprender
muitas coisas com elas”, diz Garicochea.
Mesmo assim, elas entusiasmam não só pelo potencial de tratamento, mas
por também incentivarem avanço nas pesquisas que trazem descobertas importantes
também para a prevenção. O especialista da Unifesp não esconde o otimismo:
“estamos em uma nova era, o câncer está cada vez mais se tornando uma doença
crônica quando bem abordado. Em 2040 talvez o câncer seja tratado como hoje é o
diabetes.”
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