Noam Pondé
Especial para o UOL15/12/201506h00
A fosfoetanolamina se tornou nos últimos meses um dos
mais frequentes assuntos discutidos entre os profissionais que trabalham com
oncologia. Apesar dos avanços no tratamento do câncer e de que pacientes
curados tenham se tornado comuns nos consultórios, a triste realidade é que o
câncer ainda causa muitas mortes e muito sofrimento. Sofrem os pacientes e
todos que os cercam –familiares, amigos e profissionais da saúde. Como
oncologista, poucas situações são mais desafiadoras do que lidar com um
paciente ou uma família em desespero.
Quando o câncer entra em nossas vidas, queremos bani-lo, temos a
esperança que tudo volte a ser como antes e relutamos a aceitar que isso nem
sempre é possível. Diante desta realidade, todos nós fazemos uma escolha,
consciente ou inconscientemente: aceitamos a realidade –mesmo que aos poucos– e
construímos novas formas de esperança ou negamos a realidade e deixamos que a
esperança se transforme em fantasia. O câncer é impiedoso com fantasias, e,
inevitavelmente, elas são quebradas, para o enorme sofrimento dos que as
construíram. Todos os profissionais da oncologia já presenciaram esse triste
processo, e, frequentemente, o tratamento do tumor é mais simples do que o
tratamento das fantasias que ele provoca.
É da fantasia que gera a profusão de remédios milagrosos e
terapias alternativas que prometem a cura do câncer. Todo oncologista aprende a
conviver, tolerar e, por vezes, até respeitar práticas alternativas –a ponto de
algumas delas, modernamente serem integradas à prática, após estudos sobre sua eficácia
e segurança. Mas, em algumas situações, especialmente quando o manto da ciência
é usado para encobrir o pensamento mágico, a convivência entre oncologia e
terapia alternativa se torna difícil. A fosfoetanolamina é um destes
casos.
O problema da comunidade científica não é, como vem sendo
alegado pelos "pesquisadores" envolvidos na exposição de seres
humanos de maneira irregular a uma substância experimental, em interesses
financeiros, falta de apreço pelo português ou pelo Brasil, ou mesmo falta de
empatia pelo sofrimento dos pacientes. São questionamentos relevantes de ordem
ética, científica e a preocupação com as consequências para pacientes e para o
SUS.
Como falar em ética e regras em pesquisa quando pessoas estão
sofrendo e morrendo? Será que não deveríamos tomar medidas excepcionais quando
pacientes estão desesperados? É especialmente por respeitar a solenidade desta
situação tão comum que não devemos tomar medidas excepcionais e sim seguir as
regras que garantem que não vamos adicionar mais sofrimento a essa situação.
Pacientes e familiares têm o direito de se desesperar, já médicos e
pesquisadores, não.
No passado, cientistas inescrupulosos usaram das mais diversas
formas o poder que o desespero e a falta de informação de pacientes conferem para
realizarem seu desejo por fama, por respeito e até por dinheiro. Escândalos
como os experimentos nazistas e o estudo de sífilis em Tuskegee levaram
governos e pesquisadores a perceberem que a ciência, descolada do respeito à
autonomia do paciente e da honestidade, pode cometer crimes graves. Foi
construído um sistema para impedir que isso se repetisse.
Pacientes devem saber exatamente o potencial da substância em
estudo. Devem ser livres para entrar e sair de estudos e nunca podem ser
forçados ou manipulados. A transparência deve ser total. Dados devem
publicados, avaliados, hipóteses testadas repetidamente por diferentes grupos.
Cientistas sérios apresentam suas conclusões e suas dúvidas em
congressos na frente de milhares de colegas que estão lá para aprender e para
questionar cada detalhe. Dados referentes a centenas ou milhares de pacientes
são necessários antes de declarar uma substância eficaz. Apelos emocionais
não são lançados para apoiar dados –pois emoções não apoiam dados e sim colocam
em questão sua qualidade e até sua própria existência. Do ponto de vista ético,
a fosfoetanolamina não pode ser considerada um remédio, pois ainda não passou
por todo esse processo.
A prática clínica e a pesquisa em biologia celular nos mostram
todos os dias o adversário que enfrentamos. Drogas que no laboratório parecem
funcionar e matam células cancerígenas podem não ser eficazes quando aplicadas
ao paciente. Drogas que são eficazes, muitas vezes, deixam de ser para um
paciente, pois o tumor se adapta, evolui e passa a resistir a elas. A
célula cancerígena é flexível e adaptável e pode escapar de um único remédio de
muitas maneiras diferentes.
Portanto, do ponto de vista científico, está claro que um
remédio nunca será "a cura do câncer". As declarações sobre a polivalência
da fosfoetanolamina, que age supostamente sobre qualquer tumor e em qualquer
cenário clínico (seja tumor localizado ou disseminado) não fazem sentido do
ponto de vista científico. Inibir o crescimento de células em laboratórios é
uma coisa, em seres humanos é outra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário