quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Fosfoetanolamina é uma fantasia que mais fere do que ajuda


Noam Pondé

Especial para o UOL15/12/201506h00

A fosfoetanolamina se tornou nos últimos meses um dos mais frequentes assuntos discutidos entre os profissionais que trabalham com oncologia. Apesar dos avanços no tratamento do câncer e de que pacientes curados tenham se tornado comuns nos consultórios, a triste realidade é que o câncer ainda causa muitas mortes e muito sofrimento. Sofrem os pacientes e todos que os cercam –familiares, amigos e profissionais da saúde. Como oncologista, poucas situações são mais desafiadoras do que lidar com um paciente ou uma família em desespero.

Quando o câncer entra em nossas vidas, queremos bani-lo, temos a esperança que tudo volte a ser como antes e relutamos a aceitar que isso nem sempre é possível. Diante desta realidade, todos nós fazemos uma escolha, consciente ou inconscientemente: aceitamos a realidade –mesmo que aos poucos– e construímos novas formas de esperança ou negamos a realidade e deixamos que a esperança se transforme em fantasia. O câncer é impiedoso com fantasias, e, inevitavelmente, elas são quebradas, para o enorme sofrimento dos que as construíram. Todos os profissionais da oncologia já presenciaram esse triste processo, e, frequentemente, o tratamento do tumor é mais simples do que o tratamento das fantasias que ele provoca.
É da fantasia que gera a profusão de remédios milagrosos e terapias alternativas que prometem a cura do câncer. Todo oncologista aprende a conviver, tolerar e, por vezes, até respeitar práticas alternativas –a ponto de algumas delas, modernamente serem integradas à prática, após estudos sobre sua eficácia e segurança. Mas, em algumas situações, especialmente quando o manto da ciência é usado para encobrir o pensamento mágico, a convivência entre oncologia e terapia alternativa se torna difícil. A fosfoetanolamina é um destes casos.
O problema da comunidade científica não é, como vem sendo alegado pelos "pesquisadores" envolvidos na exposição de seres humanos de maneira irregular a uma substância experimental, em interesses financeiros, falta de apreço pelo português ou pelo Brasil, ou mesmo falta de empatia pelo sofrimento dos pacientes. São questionamentos relevantes de ordem ética, científica e a preocupação com as consequências para pacientes e para o SUS.
Como falar em ética e regras em pesquisa quando pessoas estão sofrendo e morrendo? Será que não deveríamos tomar medidas excepcionais quando pacientes estão desesperados? É especialmente por respeitar a solenidade desta situação tão comum que não devemos tomar medidas excepcionais e sim seguir as regras que garantem que não vamos adicionar mais sofrimento a essa situação. Pacientes e familiares têm o direito de se desesperar, já médicos e pesquisadores, não.
No passado, cientistas inescrupulosos usaram das mais diversas formas o poder que o desespero e a falta de informação de pacientes conferem para realizarem seu desejo por fama, por respeito e até por dinheiro. Escândalos como os experimentos nazistas e o estudo de sífilis em Tuskegee levaram governos e pesquisadores a perceberem que a ciência, descolada do respeito à autonomia do paciente e da honestidade, pode cometer crimes graves. Foi construído um sistema para impedir que isso se repetisse.
Pacientes devem saber exatamente o potencial da substância em estudo. Devem ser livres para entrar e sair de estudos e nunca podem ser forçados ou manipulados. A transparência deve ser total. Dados devem publicados, avaliados, hipóteses testadas repetidamente por diferentes grupos.
Cientistas sérios apresentam suas conclusões e suas dúvidas em congressos na frente de milhares de colegas que estão lá para aprender e para questionar cada detalhe. Dados referentes a centenas ou milhares de pacientes são necessários antes de declarar uma substância eficaz. Apelos emocionais não são lançados para apoiar dados –pois emoções não apoiam dados e sim colocam em questão sua qualidade e até sua própria existência. Do ponto de vista ético, a fosfoetanolamina não pode ser considerada um remédio, pois ainda não passou por todo esse processo.
A prática clínica e a pesquisa em biologia celular nos mostram todos os dias o adversário que enfrentamos. Drogas que no laboratório parecem funcionar e matam células cancerígenas podem não ser eficazes quando aplicadas ao paciente. Drogas que são eficazes, muitas vezes, deixam de ser para um paciente, pois o tumor se adapta, evolui e passa a resistir a elas. A célula cancerígena é flexível e adaptável e pode escapar de um único remédio de muitas maneiras diferentes.

Portanto, do ponto de vista científico, está claro que um remédio nunca será "a cura do câncer". As declarações sobre a polivalência da fosfoetanolamina, que age supostamente sobre qualquer tumor e em qualquer cenário clínico (seja tumor localizado ou disseminado) não fazem sentido do ponto de vista científico. Inibir o crescimento de células em laboratórios é uma coisa, em seres humanos é outra.

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