Novidade
muda combate ao câncer, mas preços restringem acesso a terapias
POR ANA LUCIA AZEVEDO
20/06/2016 4:30
Células
de tumor de câncer no pulmão: estratégia como opção para casos em que não há
tratamento disponível - Latinstock
RIO
- Começa a chegar ao Brasil um tipo de exame que promete melhorar o tratamento
do câncer. Acena com mais eficácia e menos sofrimento. A chamada biópsia
líquida é simples e indolor. Basta uma coleta de sangue convencional. Diferente
é a análise molecular sofisticada, capaz de identificar fragmentos de DNA de
tumores na corrente sanguínea e indicar sua presença antes mesmo destes se
tornarem visíveis em análises convencionais, numa fase em que podem ser
bloqueados.
A
novidade livra pacientes de procedimentos mais caros e invasivos, as biópsias
tradicionais, que demandam internação, participação de vários profissionais e
têm riscos. Porém, a biópsia líquida é indicadora de terapias caras,
inacessíveis para a esmagadora maioria das pessoas com câncer. O exame informa
ao médico que droga pode combater determinada mutação genética ligada ao câncer
do paciente. São drogas chamadas de terapias-alvo. Têm menos efeitos colaterais
justamente porque são específicas.
A
biópsia líquida não substitui a biópsia convencional para o diagnóstico inicial
do câncer, explica o geneticista Mariano Zalis, diretor técnico da Progenética
e pioneiro na técnica no Brasil. Sua aplicação hoje é no acompanhamento do
tratamento e no controle do tumor.
Nas
palavras do oncologista clínico Carlos Gil, a biópsia líquida é uma potencial
revolução tecnológica, com desdobramentos da terapia quase inexplorados.
—
Muda a perspectiva de melhora e sobrevida do paciente. E estamos só no início.
Todavia, também é uma caixa de Pandora. O custo do exame em si nem é o ponto
principal. A grande questão é que, ao revelar mutações, leva o médico à
indicação de drogas específicas, muitas ainda experimentais. Esses remédios são
impossíveis de pagar — comenta Gil, coordenador do grupo Neotórax e diretor institucional
da Oncologia D’Or.
—
O Brasil, como os outros países, terá que entrar na discussão. Buscar saídas.
Ou teremos um sistema de castas na saúde, em que o câncer será tratável somente
para os ricos. Só quem tiver muito dinheiro viverá mais e melhor. Condição
financeira não pode ser critério de sobrevida. É um cenário assustador que
precisa ser debatido agora.
O
médico já viu alguns de seus pacientes se defrontarem com essa situação. Gil é
um dos maiores especialistas do país em câncer de pulmão, justamente o único
tipo de tumor para o qual a biópsia líquida está disponível no Brasil (existe a
expectativa de chegar, em breve, o mesmo exame para outros tumores, como
melanoma e cólon).
Como
funciona a biópsia líquida, que chega ao Brasil - Editoria de arte/O
Globo
Drogas custam milhares de reais
Um
desses pacientes é uma profissional liberal de 42 anos, mãe de filhos pequenos.
Ela respondeu bem ao tratamento inicial. Porém, após alguns meses, o tumor
começou a apresentar resistência e voltou a crescer. Por a mulher nunca ter
fumado, o médico supôs que ela poderia ter uma forma de câncer associada a uma
mutação chamada T79M. Essa mutação é agressiva, mas responde bem ao tratamento
com uma droga nova, uma terapia-alvo.
Inicialmente,
Gil a encaminhou para uma biópsia convencional. A mulher se submeteu à
internação e à anestesia para a retirada de mais uma amostra do tumor. O exame,
no entanto, não encontrou alterações.
—
A paciente ficou desesperada. Ela já havia se submetido a um processo sofrido
de biópsia, teve complicações e estava com medo da quimioterapia. Porém, na
mesma época a biópsia líquida chegou ao Brasil. E esse exame identificou e
analisou fragmentos realmente ínfimos de DNA do tumor. Tivemos sorte, o
resultado foi positivo — conta o médico. — Esse caso foi particularmente feliz
porque houve tempo de incluir a paciente num programa de doação do medicamento
pelo laboratório. E só isso viabilizou o tratamento, pois ela não teria
condições de pagar. Essas drogas custam milhares de reais por mês e muitas
vezes nem chegam ao Brasil.
Outro
paciente, um homem de meia-idade, também se beneficiou do mesmo exame. E do
tratamento.
—
Mas esse caso é diferente. Além de não haver tanto tempo para esperar, se trata
de uma família com condições de pagar R$ 75 mil por mês por caixa de remédio.
Por tempo indeterminado. Quase ninguém, ninguém mesmo, tem condições de fazer
isso. Para mim, como médico, é muito difícil. Por um lado, tenho recursos novos
e promissores. Mas corro o risco de dizer a uma pessoa com câncer que o caso
dela teria remédio, mas não há dinheiro para pagar porque custa uma fortuna —
destaca o médico.
Ele
frisa que está mais do que na hora de pensar em meios de democratizar e
viabilizar o uso não apenas dessa classe de drogas, mas de outros tratamentos
que surgem no horizonte, como as imunoterapias, também extremamente caras.
—
Acho que há excessos nos preços, mas não é só isso. Há sempre uma nova droga.
Então, é preciso não apenas da negociação de casos isolados, mas de uma
política de saúde que reduza os custos e viabilize o acesso. A China tem
experiências interessantes nesse sentido. Só recorrer à Justiça para obrigar o
SUS ou os planos a pagarem não funciona, porque resolve casos isolados, mas não
o problema. Precisamos buscar nosso caminho — afirma Gil.
Fusão de várias técnicas
A
biópsia líquida é resultado de décadas de pesquisa sobre a genética do câncer.
Ela é uma fusão de técnicas que identificam pedaços muito pequenos de DNA em
circulação no sangue. A elas se soma o conhecimento de um número
progressivamente maior de mutações associadas a tumores.
—
Cada pessoa tem uma forma própria de câncer. Nenhum tumor é igual. A biópsia
líquida é capaz de perscrutar essas especificidades. Ela é o avanço mais
recente da chamada medicina personalizada. Estudos nos EUA já identificaram
mais de 50 tipos de tumores que podem ser analisados dessa forma — explica
Mariano Zalis.
A
técnica começou a ser usada nos EUA há cerca de um ano e na Europa há seis
meses. Hoje, o exame custa, no Rio, cerca de R$ 900 — uma biópsia convencional
de pulmão pode chegar a R$ 15 mil, mas tem cobertura. A líquida não é ainda
coberta por planos de saúde.
—
Essa biópsia é um avanço muito importante, era um sonho antigo dos médicos, um
instrumento valioso de acompanhamento. Mas e agora? A tecnologia continua a
avançar, mas não as políticas de saúde. O abismo entre a medicina de ponta e o
acesso da população a esta aumenta em escala logarítmica. O SUS hoje está cerca
de dez anos atrasado em relação ao que existe de moderno no tratamento do
câncer. Se nada for feito, esse atraso só vai piorar — alerta Carlos Gil.
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