À frente de projeto de lei para reduzir a burocracia na inclusão de remédios orais contra tumores pelos planos de saúde, Fernando Maluf aponta que, no futuro, doença pode se tornar crônica
Adriana Dias Lopes
29/08/2021 - 04:30
SÃO
PAULO — Nos últimos dias, uma grande mobilização popular se formou no país
entre os pacientes com câncer. O objetivo é derrubar o recente veto que o
presidente Jair Bolsonaro impôs ao projeto de lei que obriga os planos de saúde
a pagarem os remédios orais contra a doença. Em poucos dias, um abaixo-assinado
liderado Instituto Vencer o Câncer arregimentou 145 mil assinaturas colhidas
pela plataforma a Change.org. “A liberação salvaria a vida de 50 mil pessoas
anualmente, já que essas medicações são responsáveis por 70% dos tratamentos oncológicos”,
diz o oncologista Fernando Maluf, dos hospitais Beneficência Portuguesa e do
Albert Einstein, em São Paulo, idealizador do projeto. A seguir, Maluf detalha
o impacto da ausência desse tipo de droga no tratamento dos tumores e fala dos
tratamentos que chegarão em um prazo curto de tempo e transformarão o perfil da
doença no mundo.
Por que os remédios
orais são tão importantes no tratamento do câncer?
Sete em cada dez
remédios oncológicos são orais. E menos de 5% das farmacêuticas produzem um
mesmo medicamento em duas versões, oral e injetável. Significa que estamos
sendo privados de mais da metade das medicações disponíveis mundialmente. Essas
terapias orais foram criadas para quase todo tipo de tumor. O veto ao projeto
de lei que facilita o acesso aos doentes é um erro capaz de ceifar milhares de
vida por ano, entre crianças, adolescentes e adultos.
Quais são os
obstáculos para eles entrarem no Brasil?
A liberação dos orais
pouparia a vida de 50 mil pessoas ao ano no país. Não estou nem me referindo
aqui ao Sistema Único de Saúde, um cenário muito mais abrangente e complexo.
Falo dos que têm acesso a planos de saúde. Muitas pessoas não sabem do processo
de autorização dos remédios orais, completamente diferente em relação aos
intravenosos. Quando uma droga é desenvolvida, a empresa farmacêutica submete o
estudo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No caso dos
remédios intravenosos para câncer, assim que a Anvisa libera, eles ficam
disponíveis para o uso de pacientes que tenham convênio médico. Só que para as
medicações orais há mais uma etapa, eles têm de passar por uma segunda
aprovação, feita pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Esse aval pode
levar até três anos para ocorrer. Ou seja, para muitos doentes, não dá mais
tempo para receber o tratamento. São remédios caros, que custam de 5 mil a 30
mil reais ao mês, pouquíssimas pessoas podem comprá-los. Não existe isso em
lugar nenhum no mundo, só no Brasil. Essa segunda etapa não é baseada em nenhum
parâmetro médico. O projeto de lei retira a necessidade de existir essa segunda
lista de aprovação. A Anvisa é a responsável pela liberação de remédios, não
faz sentido essa burocracia.
Mesmo com os avanços
nos conhecimentos da doença, o câncer é ainda a segunda causa de morte no
mundo. A medicina um dia vai vencer essa batalha?
As últimas
descobertas nos fizeram ver a doença de uma outra forma e justificam o fato da
incidência ser cada vez maior. Pelo menos a metade dos tumores está relacionada
ao estilo de vida. É muita coisa. De 10% a 15% estão associados à genética e o
restante a uma série de fatores, incluindo infecções, como hepatite e HPV. Um
dos maiores impactos dos maus hábitos está na má alimentação – consumo
exagerado de enlatados, embutidos e gorduras, por exemplo. Uma dieta desregrada
pode ter o mesmo peso que o cigarro, para você ter uma ideia. Defendo inclusive
a ideia de que os alimentos que estimulam o surgimento do câncer sejam vendidos
em embalagens com o alerta de que são nocivos, assim como se faz com o cigarro.
Idem para o álcool, outro fator de risco. Comprar uma pinga com uma pessoa
morrendo no rótulo inibiria muita gente. O sedentarismo influencia também. A
atividade física é protetora, assim como os bons alimentos, como a cúrcuma, o
tomate e o chá verde.
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O que devemos esperar
de novidades nos tratamentos em um prazo curto de tempo?
Eu diria que muito
brevemente, em no máximo em dois ou três anos, o perfil da doença será outro.
Teremos uma revolução nos tratamentos do câncer. Há pelo menos duas novidades
que me entusiasmam muito. Uma delas são os testes moleculares, os biomarcadores,
já disponíveis para alguns tumores, mas que se tornarão ainda mais
sofisticados. Como se fosse uma roupa feita por um alfaiate, trata-se de um
recurso que permite identificar o câncer de forma individual, com o
rastreamento do subtipo do tumor que acomete o doente. Isso torna o tratamento
mais preciso, eficaz. Ele vai também servir para avaliar um paciente que tenha
se submetido a tratamentos, se ele está ou não de fato curado, e eliminar
muitas vezes os infinitos exames que hoje são feitos nessa fase. Esses
biomarcadores podem, inclusive, definir que uma pessoa não precisa ser tratada.
A depender do tipo do câncer, como muitos de próstata, a melhor opção é essa
mesma, não tratar. Apenas observar por exames se a doença evolui ou não e
descartar terapias desnecessárias ou inefetivas. Muito em breve teremos também
uma sorte de remédios, mais especificamente de anticorpos, ligados a drogas que
colam diretamente no tumor e liberam o remédio dentro das células doentes.
Há novidades tão
expressivas na área dos diagnósticos?
Teremos dentro desse
prazo testes genéticos que rastreiam o câncer cinco anos antes de ele atingir
os órgãos. Ou seja, poderemos tratar a doença antes de ela se manifestar pelos
exames clínicos convencionais.
O que falta para se
chegar à cura total dos cânceres?
Nos últimos dez anos
evoluímos drasticamente. Hoje, cerca de 70% dos tumores rastreados no início
são curados. A taxa com o câncer de próstata chega a 90%. E com os cânceres
avançados, por volta de 40%. Não diria que um dia a doença metastática será
erradicada em todos os casos, mas certamente será crônica. Ou seja,
conviveremos com ela sem que nos mate.
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Algum tipo de câncer
um dia será erradicado?
O câncer de colo de
útero e encaixa mais perfeitamente nesse cenário. Pelo simples fato de que
existe uma vacina para preveni-lo, que é a do HPV. O vírus é transmitido
principalmente pela relação sexual e é o principal causador desses dois
tumores. Defendo a tese, inclusive, de que a vacina deveria ser dada nas
escolas. A faixa correta da imunização é entre os 9 e 13 anos de idade. E aqui
surge um problema. O imunizante é cercado de preconceitos, infelizmente. Vejo
relatos de pais com medo de que a vacina influencie de alguma forma vida sexual
de seus filhos ou provoque efeitos colaterais. Vacinação associada a
rastreamento em massa das doenças e o exame de Papanicolau certamente erradicariam
esse tumor que ainda é tão incidente.
A pandemia afetou
muito o perfil da doença?
O medo da Covid-19
colocou todas as outras doenças em segundo plano. No caso do câncer o impacto
foi brutal. No ano passado especialmente, quando ainda não tínhamos vacinas, o
cenário foi pior. As pessoas ficaram com medo de ir ao hospital, muitos
descontinuaram os tratamentos e os serviços de check-up foram esvaziados.
Estima-se que a mortalidade por câncer tenha crescido pelo menos 20%
globalmente. Mas as coisas já estão entrando nos eixos.
O Globo,
https://oglobo.globo.com/saude/em-tres-anos-tratamento-do-cancer-vivera-uma-revolucao-diz-oncologista-1-25174905
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