terça-feira, 21 de junho de 2022

O sofrimento dos brasileiros com os planos de saúde

O STJ definiu que o rol de cobertura obrigatório das operadoras de saúde no Brasil é taxativo. Ou seja, a partir de agora convênios médicos estão respaldados a negar o pagamento de terapias não previstas na lista. A decisão coloca os consumidores em situação de medo e insegurança

 


INCERTEZA Ana Maria luta contra um câncer de ovário que se tornou metastático (Crédito: João Castellano)

Fernando Lavieri

“Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”. Uma das frases mais famosas da literatura brasileira contida no livro Macunaíma, de Mário de Andrade, serve como ponto de reflexão sobre um dos temas problemáticos do País, a saúde de seus cidadãos. Desta vez, o que chama atenção e é motivo de preocupação de mais de oito milhões de pessoas é a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), alterando o rol de cobertura obrigatória das operadoras de saúde. A Corte resolveu que, a partir de agora, a lista que cobre financeiramente procedimentos cirúrgicos, terapias, medicamentos, entre outras atividades ao segurado enfermo é taxativa. Ou seja, os planos de saúde, que antes eram obrigados pela Justiça a pagar a conta em caso de haver a necessidade de o consumidor ter de passar por novos procedimentos, ficam respaldados a negar tratamentos e remédios. Segundo a deliberação, as empresas não precisam mais arcar com os custos de quaisquer tratamentos fora do rol oficial da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mesmo que haja sentenças nesse sentido.

“O convênio me negou medicamento, exame e imunoterapia. Tive que entrar com processo contra o plano diversas vezes” Ana Maria Teixeira Eland, 66 anos, paciente em tratamento contra o câncer

Na verdade o que fez o STJ foi jogar um banho de água fria sobre os consumidores, já que o próprio Poder Judiciário havia reconhecido, por meio de diversas decisões, que o rol se tratava de algo exemplificativo, que, dependendo da situação, deveria incluir outros procedimentos. Em resumo, os 3.300 procedimentos, que já constam na lista como despesas obrigatórias para os convênios, se tornam uma camisa de força para quem precisa de alguma nova terapia com rapidez. Pessoas que estão em tratamento podem ter suas terapias sumariamente interrompidas. Dinâmica como é a área da medicina, inovações surgem de forma constante. “A decisão é ruim. Agora, as pessoas vão ter que pagar por fora por tratamentos inovadores”, diz Renata Abalém, especialista em direito do consumidor e integrante da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP. Ela tem razão. “Atualmente, há adultos diagnosticados com autismo, e com isso, surgem necessidades diferentes”, diz.

O reconhecimento de inovações acontece de fato. As novidades entram sim no rol de cobertura das operadoras de saúde. Ocorre, no entanto, que essa atualização não se dá do dia para noite. Se exige para tal, longuíssimos cento e oitenta dias, e, somente após esse período, é que remédios, tecnologias ou terapias são acolhidos. “Esse é o tempo necessário para que um novo fármaco, por exemplo, seja analisado com o devido rigor científico”, pontua Vera Valente, diretora executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), organização que representa quinze grupos de operadoras e 40% dos beneficiários dos planos de assistência médica. Segundo Vera, a decisão do STJ foi equilibrada porque trás previsibilidade ao setor. “A situação anterior, poderia comprometer o funcionamento de empresas médias e pequenas”, diz ela. Mas seu raciocínio recebe criticas de todos os lados.

“Precisei recorrer para que Manuela fizesse um exame, tivesse acesso ao canabidiol e passasse por cirurgia” Jéssica Brandão, mãe de Manuela, de 5 anos, que sofre de displasia cortical

“Vai aumentar a quantidade de incursões na Justiça para garantir o que deveria ser um direito”, diz Renata. “Somente nos tribunais conseguimos assegurar o prosseguimento de muitos tratamentos e, consequentemente, evitar mortes”, afirma Columbano Feijó, advogado, especialista em direito de saúde suplementar, e sócio da Falcon, Gail, Feijó & Sluiuzas Advocacia. Quer dizer, se antes da deliberação era difícil as operadoras aceitarem pagar, agora vai ficar pior, pois tribunais de primeira instância certamente serão impactados pelo que definiu o STJ, e, assim, o que antes era julgado de forma favorável ao consumidor, agora poderá ser analisado de maneira contrária. “Uma pessoas que está em tratamento contra o câncer, por exemplo, e precisa de uma cirurgia ou um medicamento novo rapidamente pode não ter tempo de espera e morrer”, explica Columbano Feijó. Ele diz que o paciente passa a ser obrigado a comprovar que o tratamento solicitado pelo médico fora da lista é realmente algo que lhe será benéfico. “Os planos de saúde estão respaldados a negar tudo que estiver fora do rol”, afirma.

Os clientes dos planos de saúde se mostram amedrontados com a situação de insegurança criada a partir de agora. É o caso de Jéssica Brandão, mãe da Manuela, de 5 anos. Desde os dois, a criança tem epilepsia, e chegou a ter trinta episódios de instabilidade diários. “Minha filha me abraçava e dizia que a crise estava chegando”, conta Jéssica. Para ajudar Manuela, Jéssica precisou recorrer à justiça três vezes contra o convênio. Primeiro para fazer um importante exame, o qual definiu o diagnostico, mas que tem o custo de R$ 14 mil. Depois, ela foi aos tribunais para garantir que Manuela tivesse acesso ao canabidiol, remédio que reduziu as crises a dez casos por dia. A menina tem que tomar dois frascos por mês, mas devido ao preço, o tratamento seria descontinuado, já que cada unidade custa R$ 2.500. O terceiro momento que precisou processar o plano de saúde foi quando o recebeu o diagnostico: displasia cortical. “Com uma liminar conseguimos que ela fosse operada”, afirma. Hoje, a epilepsia desapareceu, mas a criança ainda precisa de algumas medicações, inclusive o canabidiol. “É uma fase de desmame, tenho medo que o plano deixe de fornecer”, diz.

“Quando me olhava no espelho sentia nojo. Essa situação me afeta socialmente”
Patricia Grunheidt, de 48 anos, passou uma cirurgia bariátrica e aguarda algumas reparações

O pavor de não conseguir manter o tratamento é um sentimento compartilhado por muitas pessoas. A diretora de marketing Patricia Grunheidt, de 48 anos, também está nessa luta. Ela se submeteu a uma cirurgia bariátrica em 2013, quando pesava 130 quilos. Reduziu o peso para 64 quilos e, como todas as pessoas nessa condição, precisou passar por manobras cirúrgicas para reparação de sobras de pele. Já esteve na sala cirúrgica em três ocasiões, pois todo o seu corpo precisou de reparos. Mas somente conseguiu que o plano pagasse pelos procedimentos com uma liminar nas mãos “Quando me olhava no espelho sentia nojo. Essa situação me afeta socialmente”, afirma. O convenio médico se dispôs a pagar por parte dos procedimentos, mas não pelo total. Ela diz que tem medo de não poder dar continuidade ao tratamento. “Justamente agora que só preciso cuidar dos braços”, conta.

Outra amostra de como o rol de cobertura taxativo é prejudicial aos consumidores, até em situações que a pessoas está acamada há necessidade de recorrer à justiça. É o que conta Ana Maria Teixeira Eland de 66 anos. Ela luta contra um câncer de ovário que se tornou metastático e também com sua assistência médica. O convenio lhe negou medicamento, exame e imunoterapia. “Tive que entrar com processo contra o plano diversas vezes”, conta. Uma das drogas que lhe mantém viva, ingerindo dois comprimidos por dia, tem o preço de R$ 25 mil. “O rol taxativo representa uma incerteza a mais”, disse.

A deliberação do STJ ocorreu na quarta-feira, 8, e teve seis votos a favor do rol taxativo, incluído o do relator, ministro Luis Felipe Salomão. Acontece, no entanto, que decisão tomada com tamanha tranquilidade pelos magistrados representa, agora, enorme preocupação para pessoas que estão em tratamento de saúde complexos. Mais: confirma que Mário de Andrade tinha razão, a condição natural de crescimento do formigueiro e de pouca saúde dos brasileiros vai permanecer. No mundo da política, especialmente no Senado, houve uma reação contraria à decisão do STJ. A senadora Mara Gabrilli, (PSDB), por exemplo, diz que essa é uma discussão antiga no Congresso e afirma de maneira contundente que a definição é ruim a toda a população, especialmente, para pessoas portadoras de deficiência, autistas e gente que tem doenças raras. “Essas pessoas vão ficar desamparadas, o rol taxativo mata”, afirma Mara. Ela conta que está articulando uma reação junto ao também senador Randolfe Rodrigues (Rede Sustentabilidade), que tem um projeto de lei que, se aprovado, muda o cenário e torna a lista exemplificativa. De qualquer forma, nesse jogo político que se desenvolve quem está sempre ameaçado e perde é o consumidor.

 

Saiba como a decisão do STJ sobre rol taxativo afeta planos de saúde

Ao decidir que apenas os procedimentos listados pela ANS, conhecido como rol taxativo, devem ser cobertos pelos convênios, Superior Tribunal de Justiça limita a obrigatoriedade, o que levanta dúvidas nos usuários

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que os planos de saúde devem oferecer aos usuários apenas os procedimentos listados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o chamado rol taxativo. Na prática, a maioria dos serviços continuarão sendo cobertos pelos convênios. Contudo, há limitação de novidades e soluções inovadoras, o que poderá prejudicar alguns tratamentos, especialmente de pessoas que têm doenças ou deficiências incomuns.

O rol da ANS com mais de 3,7 mil procedimentos vinha sendo considerado exemplificativo pela maior parte de decisões judiciais sobre o tema. Isso significa que os pacientes que tivessem procedimentos que não constassem na lista poderiam recorrer à Justiça para ampliar o atendimento.

Assim, procedimentos ou medicamentos que tivessem semelhança com os que já estavam previstos, eram adicionados à conta do plano de saúde. Com o novo entendimento do STJ, os convênios devem atender apenas à lista da agência, que já contém toda a obrigatoriedade de cobertura. Ou seja, o que está fora, não precisa ser pago pela operadora.

Segundo a especialista em direito civil Ana Luísa Araújo Machado, "em outras palavras, salvo em situações excepcionais, as operadoras não serão obrigadas a custear tratamentos médicos que não constem desta lista se nela existir alternativa igualmente eficaz, efetiva, segura e já incorporada".

Machado explica que a regra admite exceções. "É o caso, por exemplo, de quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) sugere algum procedimento em específico ou nos casos de tratamento para câncer em que se utiliza medicação off-label, entre outros", disse. Ana Luísa ressalta que a taxatividade do rol não significa que os planos de saúde só podem oferecer o que está previsto na lista. "As operadoras não têm, a partir de agora, obrigação em fornecer os procedimentos não previstos na lista, mas faz parte da liberalidade delas oferecer coberturas ampliadas ou negociar com os segurados aditivos contratuais", afirmou.

A determinação do STJ, contudo, admite excepcionalidades. O ministro da Corte Villas Bôas Cueva ressaltou a possibilidade de concessão de excepcionalidades: cada consumidor, por termo aditivo no contrato do plano, pode requerer a ampliação da cobertura, caso deseje um tratamento específico — naturalmente os valores das mensalidades serão maiores.

Portanto, segundo Ana Luísa, apesar de a decisão dos ministros do STJ não ser absolutamente vinculante às instâncias inferiores, o resultado é um marco expressivo na regulação das operadoras e planos de saúde e tende a fazer com que, a partir de hoje, caminhe para corroborar com o entendimento da natureza taxativa do rol.

Prejudicial

Carlos Eduardo Gouvea, vice-presidente da Aliança Brasileira da Indústria inovadora em Saúde (ABIIS), aponta que o rol taxativo acabou afetando alguns setores que têm situações muito críticas. "Como, por exemplo, as doenças raras, que têm um caso para cada 10 mil, e que muitas vezes a terapia essencial para aquela determinada doença são 'life saving' e não constam no rol da ANS."

De acordo com Gouvea, a situação acaba diminuindo o acesso a novas terapias e fica restrito ao que está pré-aprovado, dificultando inclusive questões judiciais. "Tínhamos muitos medicamentos que já eram aceitos mesmo que de forma judicializada", pontuou.

Fim da divergência

A determinação do STJ encerrou a divergência jurisprudencial que se estendia desde 2019. Naquele ano, o ministro Luis Felipe Salomão inaugurou a controvérsia ao afirmar que o rol é meramente exemplificativo. A ANS já considera a natureza taxativa do rol desde a elaboração da última resolução normativa, em julho do ano passado. Em contrapartida, a jurisprudência majoritária entendia o rol meramente exemplificativo. Na prática, o julgamento precisava decidir se o rol deveria ser taxativo, oferecendo e limitando a lista de procedimentos obrigatórios, ou exemplificativo, servindo como uma referência mínima de serviços a serem oferecidos pelos planos de saúde. Por seis votos a três, a 2ª Seção do STJ determinou que o rol é taxativo, mantendo a obrigatoriedade de atendimento para os casos previstos na lista da ANS, mas com critério, abrindo a possibilidade de análise das exceções. O rol da ANS compreende todas as doenças previstas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS).

 

Tira-dúvidas

O que é o rol taxativo?

Taxatividade significa que aquele rol enxuga determinados tipos de tratamento. Ou seja, o plano não é obrigado, em tese, a cobrir nada que esteja fora da lista de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Esta lista é básica e não contempla diversos tratamentos, como medicamentos aprovados recentemente, alguns tipos de quimioterapia oral e de radioterapia, e cirurgias com técnicas de robótica, próteses, entre outros.

Quais procedimentos perdem a cobertura dos planos de saúde?

A nova regra limita o número de sessões ou outros tipos de soluções médicas para algumas terapias de pessoas com autismo, doenças raras (aquelas que há uma a cada 10 mil pessoas) e outros tipos de deficiência. Os planos de saúde podem recusar esses tratamentos. No antigo modelo, ao ter a terapia semelhante, o plano de saúde poderia aceitar pagar ou conceder reembolso. Agora o acesso a novos produtos, diagnósticos, dispositivos ou medicamentos que não estão aprovados de forma oficial no rol da ANS, não terão obrigação de cobertura dos planos.

Há exceções?

O entendimento do STJ é de que a lista, embora taxativa, admita algumas exceções, como terapias recomendadas expressamente pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), tratamentos para câncer, portadores de HIV ou algum tipo de mutação genética que atinge mais pessoas, também terão continuidade no tratamento. Há ainda a previsão para caso não haja substituto terapêutico ou depois que os procedimentos incluídos na lista da ANS forem esgotados, o plano arca com a cobertura de tratamento fora do rol, indicado pelo médico ou odontólogo assistente. Aquelas situações que atingem a maioria das pessoas, situações normais e comuns continuarão sendo atendidas.

Como comprovar a eficácia de outro tratamento?

Os caminhos ainda precisam ser melhor esclarecidos. Mas, geralmente, a comprovação é feita pelo próprio fabricante ou sociedade médica quando tem uma nova tecnologia, tratamento ou medicamento. Eles submetem-se à ANS, com todas as exigências e trâmites especificados pela agência. O prazo para o aval pode durar de seis meses a dois anos. O grande problema é que, na maioria das vezes, o fabricante não está no Brasil ou não há interesse comercial para tratamentos de doenças que têm pouca frequência na população e uma oferta menor no mercado nacional.

O que o cidadão pode fazer ?

A ANS tem aberto canais para o cidadão, pelo próprio site da agência, clicando no "espaço do consumidor" (que pode ser acessado pelo endereço eletrônico: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/consumidor). Nesse espaço, o cidadão pode consultar a cobertura específica e denunciar caso o plano não esteja cumprindo a regra. É possível fazer a reclamação diretamente à agência, que deve notificar as operadoras sobre a reclamação e fazer uma devolutiva ao cidadão. A pessoa também pode enviar a proposta para a operadora com a previsão da ANS. Caso não haja manifestação de nenhum dos envolvidos, a saída é judicializar. O paciente ou cidadão deve comprovar que sua situação entra no rol de exceções. A ação é movida contra a operadora.

Quais pontos se deve ficar de olho?

É preciso observar a própria situação e necessidade de atendimento e se consta ou não no rol. É importante também questionar se a operadora de fato está atualizada com a lista mais recente da ANS, caso perceba algum tipo de desvinculação com o rol atual deve-se imediatamente fazer a reclamação na própria operadora e na ANS. Você pode conferir a lista da ANS pelo site da agência na aba de "espaço do consumidor" e "o que o seu plano deve cobrir"

https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2022/06/5014895-saiba-como-a-decisao-do-stj-sobre-rol-taxativo-afeta-planos-de-saude.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário