O STJ definiu que o rol de cobertura obrigatório das operadoras de saúde no Brasil é taxativo. Ou seja, a partir de agora convênios médicos estão respaldados a negar o pagamento de terapias não previstas na lista. A decisão coloca os consumidores em situação de medo e insegurança
INCERTEZA Ana Maria luta contra um câncer de ovário
que se tornou metastático (Crédito: João Castellano)
Fernando
Lavieri
“Pouca
saúde e muita saúva os males do Brasil são”. Uma das frases mais famosas da
literatura brasileira contida no livro Macunaíma, de Mário de Andrade, serve
como ponto de reflexão sobre um dos temas problemáticos do País, a saúde de
seus cidadãos. Desta vez, o que chama atenção e é motivo de preocupação de mais
de oito milhões de pessoas é a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ),
alterando o rol de cobertura obrigatória das operadoras de saúde. A Corte
resolveu que, a partir de agora, a lista que cobre financeiramente
procedimentos cirúrgicos, terapias, medicamentos, entre outras atividades ao
segurado enfermo é taxativa. Ou seja, os planos de saúde, que antes eram
obrigados pela Justiça a pagar a conta em caso de haver a necessidade de o
consumidor ter de passar por novos procedimentos, ficam respaldados a negar
tratamentos e remédios. Segundo a deliberação, as empresas não precisam mais
arcar com os custos de quaisquer tratamentos fora do rol oficial da Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mesmo que haja sentenças nesse sentido.
“O convênio me negou medicamento, exame e
imunoterapia. Tive que entrar com processo contra o plano diversas vezes” Ana Maria Teixeira Eland, 66 anos, paciente
em tratamento contra o câncer
Na
verdade o que fez o STJ foi jogar um banho de água fria sobre os consumidores,
já que o próprio Poder Judiciário havia reconhecido, por meio de diversas
decisões, que o rol se tratava de algo exemplificativo, que, dependendo da
situação, deveria incluir outros procedimentos. Em resumo, os 3.300
procedimentos, que já constam na lista como despesas obrigatórias para os
convênios, se tornam uma camisa de força para quem precisa de alguma nova
terapia com rapidez. Pessoas que estão em tratamento podem ter suas terapias
sumariamente interrompidas. Dinâmica como é a área da medicina, inovações
surgem de forma constante. “A decisão é ruim. Agora, as pessoas vão ter que
pagar por fora por tratamentos inovadores”, diz Renata Abalém, especialista em
direito do consumidor e integrante da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP.
Ela tem razão. “Atualmente, há adultos diagnosticados com autismo, e com isso,
surgem necessidades diferentes”, diz.
O
reconhecimento de inovações acontece de fato. As novidades entram sim no rol de
cobertura das operadoras de saúde. Ocorre, no entanto, que essa atualização não
se dá do dia para noite. Se exige para tal, longuíssimos cento e oitenta dias,
e, somente após esse período, é que remédios, tecnologias ou terapias são
acolhidos. “Esse é o tempo necessário para que um novo fármaco, por exemplo,
seja analisado com o devido rigor científico”, pontua Vera Valente, diretora
executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), organização
que representa quinze grupos de operadoras e 40% dos beneficiários dos planos
de assistência médica. Segundo Vera, a decisão do STJ foi equilibrada porque
trás previsibilidade ao setor. “A situação anterior, poderia comprometer o
funcionamento de empresas médias e pequenas”, diz ela. Mas seu raciocínio
recebe criticas de todos os lados.
“Precisei recorrer para que Manuela
fizesse um exame, tivesse acesso ao canabidiol e passasse por
cirurgia” Jéssica Brandão, mãe de Manuela, de 5
anos, que sofre de displasia cortical
“Vai
aumentar a quantidade de incursões na Justiça para garantir o que deveria ser
um direito”, diz Renata. “Somente nos tribunais conseguimos assegurar o
prosseguimento de muitos tratamentos e, consequentemente, evitar mortes”,
afirma Columbano Feijó, advogado, especialista em direito de saúde suplementar,
e sócio da Falcon, Gail, Feijó & Sluiuzas Advocacia. Quer dizer, se antes
da deliberação era difícil as operadoras aceitarem pagar, agora vai ficar pior,
pois tribunais de primeira instância certamente serão impactados pelo que
definiu o STJ, e, assim, o que antes era julgado de forma favorável ao
consumidor, agora poderá ser analisado de maneira contrária. “Uma pessoas que
está em tratamento contra o câncer, por exemplo, e precisa de uma cirurgia ou
um medicamento novo rapidamente pode não ter tempo de espera e morrer”, explica
Columbano Feijó. Ele diz que o paciente passa a ser obrigado a comprovar que o
tratamento solicitado pelo médico fora da lista é realmente algo que lhe será
benéfico. “Os planos de saúde estão respaldados a negar tudo que estiver fora
do rol”, afirma.
Os
clientes dos planos de saúde se mostram amedrontados com a situação de
insegurança criada a partir de agora. É o caso de Jéssica Brandão, mãe da
Manuela, de 5 anos. Desde os dois, a criança tem epilepsia, e chegou a ter
trinta episódios de instabilidade diários. “Minha filha me abraçava e dizia que
a crise estava chegando”, conta Jéssica. Para ajudar Manuela, Jéssica precisou
recorrer à justiça três vezes contra o convênio. Primeiro para fazer um
importante exame, o qual definiu o diagnostico, mas que tem o custo de R$ 14
mil. Depois, ela foi aos tribunais para garantir que Manuela tivesse acesso ao
canabidiol, remédio que reduziu as crises a dez casos por dia. A menina tem que
tomar dois frascos por mês, mas devido ao preço, o tratamento seria
descontinuado, já que cada unidade custa R$ 2.500. O terceiro momento que
precisou processar o plano de saúde foi quando o recebeu o diagnostico:
displasia cortical. “Com uma liminar conseguimos que ela fosse operada”,
afirma. Hoje, a epilepsia desapareceu, mas a criança ainda precisa de algumas
medicações, inclusive o canabidiol. “É uma fase de desmame, tenho medo que o
plano deixe de fornecer”, diz.
“Quando me olhava no espelho sentia nojo. Essa
situação me afeta socialmente”
Patricia Grunheidt, de 48 anos, passou uma cirurgia bariátrica e aguarda
algumas reparações
O
pavor de não conseguir manter o tratamento é um sentimento compartilhado por
muitas pessoas. A diretora de marketing Patricia Grunheidt, de 48 anos, também
está nessa luta. Ela se submeteu a uma cirurgia bariátrica em 2013, quando
pesava 130 quilos. Reduziu o peso para 64 quilos e, como todas as pessoas nessa
condição, precisou passar por manobras cirúrgicas para reparação de sobras de
pele. Já esteve na sala cirúrgica em três ocasiões, pois todo o seu corpo
precisou de reparos. Mas somente conseguiu que o plano pagasse pelos
procedimentos com uma liminar nas mãos “Quando me olhava no espelho sentia
nojo. Essa situação me afeta socialmente”, afirma. O convenio médico se dispôs
a pagar por parte dos procedimentos, mas não pelo total. Ela diz que tem medo
de não poder dar continuidade ao tratamento. “Justamente agora que só preciso
cuidar dos braços”, conta.
Outra
amostra de como o rol de cobertura taxativo é prejudicial aos consumidores, até
em situações que a pessoas está acamada há necessidade de recorrer à justiça. É
o que conta Ana Maria Teixeira Eland de 66 anos. Ela luta contra um câncer de
ovário que se tornou metastático e também com sua assistência médica. O
convenio lhe negou medicamento, exame e imunoterapia. “Tive que entrar com
processo contra o plano diversas vezes”, conta. Uma das drogas que lhe mantém
viva, ingerindo dois comprimidos por dia, tem o preço de R$ 25 mil. “O rol
taxativo representa uma incerteza a mais”, disse.
A
deliberação do STJ ocorreu na quarta-feira, 8, e teve seis votos a favor do rol
taxativo, incluído o do relator, ministro Luis Felipe Salomão. Acontece, no
entanto, que decisão tomada com tamanha tranquilidade pelos magistrados
representa, agora, enorme preocupação para pessoas que estão em tratamento de
saúde complexos. Mais: confirma que Mário de Andrade tinha razão, a condição
natural de crescimento do formigueiro e de pouca saúde dos brasileiros vai
permanecer. No mundo da política, especialmente no Senado, houve uma reação
contraria à decisão do STJ. A senadora Mara Gabrilli, (PSDB), por exemplo, diz
que essa é uma discussão antiga no Congresso e afirma de maneira contundente
que a definição é ruim a toda a população, especialmente, para pessoas
portadoras de deficiência, autistas e gente que tem doenças raras. “Essas
pessoas vão ficar desamparadas, o rol taxativo mata”, afirma Mara. Ela conta
que está articulando uma reação junto ao também senador Randolfe Rodrigues
(Rede Sustentabilidade), que tem um projeto de lei que, se aprovado, muda o
cenário e torna a lista exemplificativa. De qualquer forma, nesse jogo político
que se desenvolve quem está sempre ameaçado e perde é o consumidor.
Saiba como a
decisão do STJ sobre rol taxativo afeta planos de saúde
Ao decidir
que apenas os procedimentos listados pela ANS, conhecido como rol taxativo,
devem ser cobertos pelos convênios, Superior Tribunal de Justiça limita a
obrigatoriedade, o que levanta dúvidas nos usuários
O
Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que os planos de saúde devem
oferecer aos usuários apenas os procedimentos listados pela Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS), o chamado rol taxativo. Na prática, a maioria dos
serviços continuarão sendo cobertos
pelos convênios. Contudo, há limitação de novidades e soluções inovadoras, o que poderá
prejudicar alguns tratamentos, especialmente de pessoas que têm doenças ou
deficiências incomuns.
O rol da
ANS com mais de 3,7 mil procedimentos vinha sendo considerado exemplificativo
pela maior parte de decisões judiciais sobre o tema. Isso significa que os
pacientes que tivessem procedimentos que não constassem na lista poderiam
recorrer à Justiça para ampliar o atendimento.
Assim,
procedimentos ou medicamentos que tivessem semelhança com os que já estavam
previstos, eram adicionados à conta do plano de saúde. Com o novo entendimento do STJ, os
convênios devem atender apenas à lista da agência, que já contém toda a
obrigatoriedade de cobertura. Ou seja, o que está fora, não precisa ser pago
pela operadora.
Segundo a
especialista em direito civil Ana Luísa Araújo Machado, "em outras
palavras, salvo em situações excepcionais, as operadoras não serão obrigadas a
custear tratamentos médicos que não constem desta lista se nela existir
alternativa igualmente eficaz, efetiva, segura e já incorporada".
Machado
explica que a regra admite exceções. "É o caso, por exemplo, de quando o
Conselho Federal de Medicina (CFM) sugere algum procedimento em específico ou
nos casos de tratamento para câncer em que se utiliza medicação off-label,
entre outros", disse. Ana Luísa ressalta que a taxatividade do rol não
significa que os planos de saúde só podem oferecer o que está previsto na
lista. "As operadoras não têm, a partir de agora, obrigação em fornecer os
procedimentos não previstos na lista, mas faz parte da liberalidade delas
oferecer coberturas ampliadas ou negociar com os segurados aditivos
contratuais", afirmou.
A
determinação do STJ, contudo, admite excepcionalidades. O ministro da Corte
Villas Bôas Cueva ressaltou a possibilidade de concessão de excepcionalidades:
cada consumidor, por termo aditivo no contrato do plano, pode requerer a
ampliação da cobertura, caso deseje um tratamento específico — naturalmente os
valores das mensalidades serão maiores.
Portanto,
segundo Ana Luísa, apesar de a decisão dos ministros do STJ não ser
absolutamente vinculante às instâncias inferiores, o resultado é um marco
expressivo na regulação das operadoras e planos de saúde e tende a fazer com
que, a partir de hoje, caminhe para corroborar com o entendimento da natureza
taxativa do rol.
Prejudicial
Carlos
Eduardo Gouvea, vice-presidente da Aliança Brasileira da Indústria inovadora em
Saúde (ABIIS), aponta que o rol taxativo acabou afetando alguns setores que têm
situações muito críticas. "Como, por exemplo, as doenças raras, que têm um
caso para cada 10 mil, e que muitas vezes a terapia essencial para aquela
determinada doença são 'life saving' e não constam no rol da ANS."
De acordo
com Gouvea, a situação acaba diminuindo o acesso a novas terapias e fica
restrito ao que está pré-aprovado, dificultando inclusive questões judiciais.
"Tínhamos muitos medicamentos que já eram aceitos mesmo que de forma
judicializada", pontuou.
Fim da divergência
A
determinação do STJ encerrou a divergência jurisprudencial que se estendia
desde 2019. Naquele ano, o ministro Luis Felipe Salomão inaugurou a
controvérsia ao afirmar que o rol é meramente exemplificativo. A ANS já
considera a natureza taxativa do rol desde a elaboração da última resolução
normativa, em julho do ano passado. Em contrapartida, a jurisprudência
majoritária entendia o rol meramente exemplificativo. Na prática, o julgamento
precisava decidir se o rol deveria ser taxativo, oferecendo e limitando a lista
de procedimentos obrigatórios, ou exemplificativo, servindo como uma referência
mínima de serviços a serem oferecidos pelos planos de saúde. Por seis votos a
três, a 2ª Seção do STJ determinou que o rol é taxativo, mantendo a
obrigatoriedade de atendimento para os casos previstos na lista da ANS, mas com
critério, abrindo a possibilidade de análise das exceções. O rol da ANS
compreende todas as doenças previstas na Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), da
Organização Mundial da Saúde (OMS).
Tira-dúvidas
O que é o rol taxativo?
Taxatividade significa que aquele rol enxuga determinados tipos de
tratamento. Ou seja, o plano não é obrigado, em tese, a cobrir nada que esteja
fora da lista de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Esta lista é básica e não contempla diversos tratamentos, como medicamentos
aprovados recentemente, alguns tipos de quimioterapia oral e de radioterapia, e
cirurgias com técnicas de robótica, próteses, entre outros.
Quais procedimentos perdem a cobertura dos planos de saúde?
A nova regra limita o número de sessões ou outros tipos de soluções
médicas para algumas terapias de pessoas com autismo, doenças raras (aquelas
que há uma a cada 10 mil pessoas) e outros tipos de deficiência. Os planos de
saúde podem recusar esses tratamentos. No antigo modelo, ao ter a terapia
semelhante, o plano de saúde poderia aceitar pagar ou conceder reembolso. Agora
o acesso a novos produtos, diagnósticos, dispositivos ou medicamentos que não
estão aprovados de forma oficial no rol da ANS, não terão obrigação de
cobertura dos planos.
Há exceções?
O entendimento do STJ é de que a lista, embora taxativa, admita algumas
exceções, como terapias recomendadas expressamente pelo Conselho Federal de Medicina
(CFM), tratamentos para câncer, portadores de HIV ou algum tipo de mutação
genética que atinge mais pessoas, também terão continuidade no tratamento. Há
ainda a previsão para caso não haja substituto terapêutico ou depois que os
procedimentos incluídos na lista da ANS forem esgotados, o plano arca com a
cobertura de tratamento fora do rol, indicado pelo médico ou odontólogo
assistente. Aquelas situações que atingem a maioria das pessoas, situações
normais e comuns continuarão sendo atendidas.
Como comprovar a eficácia de outro tratamento?
Os caminhos ainda precisam ser melhor esclarecidos. Mas, geralmente, a
comprovação é feita pelo próprio fabricante ou sociedade médica quando tem uma
nova tecnologia, tratamento ou medicamento. Eles submetem-se à ANS, com todas
as exigências e trâmites especificados pela agência. O prazo para o aval pode
durar de seis meses a dois anos. O grande problema é que, na maioria das vezes,
o fabricante não está no Brasil ou não há interesse comercial para tratamentos
de doenças que têm pouca frequência na população e uma oferta menor no mercado
nacional.
O que o cidadão pode fazer ?
A ANS tem aberto canais para o cidadão, pelo próprio site da agência,
clicando no "espaço do consumidor" (que pode ser acessado pelo
endereço eletrônico: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/consumidor). Nesse
espaço, o cidadão pode consultar a cobertura específica e denunciar caso o
plano não esteja cumprindo a regra. É possível fazer a reclamação diretamente à
agência, que deve notificar as operadoras sobre a reclamação e fazer uma
devolutiva ao cidadão. A pessoa também pode enviar a proposta para a operadora
com a previsão da ANS. Caso não haja manifestação de nenhum dos envolvidos, a
saída é judicializar. O paciente ou cidadão deve comprovar que sua situação
entra no rol de exceções. A ação é movida contra a operadora.
Quais pontos se deve ficar de olho?
É preciso observar a própria situação e necessidade de atendimento e se
consta ou não no rol. É importante também questionar se a operadora de fato
está atualizada com a lista mais recente da ANS, caso perceba algum tipo de
desvinculação com o rol atual deve-se imediatamente fazer a reclamação na
própria operadora e na ANS. Você pode conferir a lista da ANS pelo site da agência na
aba de "espaço do consumidor" e "o que o seu plano deve
cobrir"
https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2022/06/5014895-saiba-como-a-decisao-do-stj-sobre-rol-taxativo-afeta-planos-de-saude.html
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