RIO e SÃO PAULO — A
comunidade científica manifestou ontem indignação com a aprovação na Câmara dos
Deputados, na noite de terça-feira, de um projeto de lei que autoriza a
produção e distribuição da fosfoetanolamina sintética, a chamada “pílula do
câncer”. Pesquisadores entrevistados pelo GLOBO destacam que a substância não
foi regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que,
por isso, sua eficácia, dosagem e efeitos colaterais são desconhecidos.
O projeto, que deve
ser examinado pelo Senado até a semana que vem, também é apontado por
cientistas como uma demonstração apenas política. Prova disso seria a falta de
instruções no texto sobre como a pílula poderia chegar aos pacientes. A Anvisa,
por sua vez, avalia que a liberação de um remédio que não passou por crivo
técnico “seria colocar em risco a saúde da população” e retiraria a
credibilidade da agência e de outros medicamentos fabricados no país.
— Não sabemos se
funciona, se é tóxico, se interfere no tratamento convencional. A bula deste
remédio seria um papel em branco — acusa Auro del Giglio, chefe da Oncologia
Clínica do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer. — Seriam necessários
pelo menos quatro anos até este medicamento passar por todos os ensaios
clínicos necessários.
EFEITOS
COLATERAIS TÓXICOS
Coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB, Volnei Garrafa classifica o
projeto de lei como “absolutamente irresponsável” ao ter pulado exames
fundamentais para o desenvolvimento de uma terapia, como a averiguação de
tolerância do remédio em voluntários.
— O Congresso
Nacional está se rendendo a pressões ao passar por cima da comunidade
científica — protesta Garrafa, que também integra o Comitê Internacional de
Bioética da Unesco. — A autonomia proporcionada pelo projeto pode gerar
problemas na Justiça e também sujeita a população a muitas reações adversas.
Não conhecemos os efeitos colaterais do medicamento. Podem ser tóxicos, podem
levar ao nascimento de bebês deformados, entre muitas reações.
Segundo o texto
aprovado na Câmara, a fosfoetanolamina poderá ser usada mediante apresentação
de laudo médico e com consentimento do paciente, que teria que assinar um termo
de compromisso. A proposta também autoriza a fabricação da substância mesmo sem
o registro da Anvisa. Mas esta fabricação ficaria a cargo de “agentes
regularmente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente”,
afirma o projeto de lei, assinado por 26 deputados.
Em nota, a Anvisa
ressalta que “a única coisa inusitada em relação à fosfoetanolamina é o fato de
que uma substância que foi desenvolvida há 20 anos, e vir sendo usada de
maneira ilegal durante esse largo período, nunca ter suscitado em seus
desenvolvedores a preocupação em fabricá-la em local adequado, realizar ensaios
clínicos de acordo com os protocolos e, por fim, obter seu registro”. A agência
se colocou à disposição para esclarecimentos no Congresso.
Durante anos, a
“pílula do câncer” foi distribuída por funcionários do Instituto de Química da
USP de São Carlos, com relatos de pacientes defendendo sua eficácia. Em junho
do ano passado, a universidade parou de repassar a substância. Pacientes e seus
familiares começaram a entrar na Justiça para obter as pílulas, e, em outubro,
o Supremo Tribunal Federal (STF) destravou a distribuição. Imediatamente
formaram-se filas no local. No mês seguinte, porém, uma outra decisão, desta
vez do Tribunal de Justiça de São Paulo, impediu o repasse.
A Comissão Nacional
de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde avaliará, a partir de abril,
a segurança e a eficácia da substância no tratamento de pessoas com câncer em
estágio avançado. A fosfoetanolamina será sintetizada em um laboratório em
Cravinhos, a 270 quilômetros da capital paulista. Depois, o medicamento será
encapsulado pela Furp, laboratório farmacêutico oficial do governo, ligado à
Secretaria estadual de Saúde, e segue para a fase de testes.
DISTRIBUIÇÃO
GRATUITA
O pesquisador
aposentado Gilberto Chierice, que estudou a substância na USP de São Carlos,
comemorou a aprovação na Câmara e revela que ainda é bastante assediado por
pacientes com câncer.
— As pessoas
criticaram primeiro, para depois verem que eu estava certo. Acredito que,
quando tiver aprovação total, o governo do estado terá condições de fabricar a
pílula em grande quantidade.
Um dos autores do
projeto, o deputado Celso Russomanno (PRB-SP) explica que a intenção é tornar a
pílula disponível gratuitamente pelo SUS. Em circunstâncias normais, no
entanto, isso significaria obter autorização da Anvisa. Mas o deputado acredita
que, com a aprovação da proposta no Congresso, este procedimento não será
necessário.
— É lei. Poderemos
distribuir, mesmo sem autorização da agência. Não vamos esperar por sua
burocracia.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/cientistas-reagem-aprovacao-de-projeto-de-lei-sobre-pilula-do-cancer-18842181#ixzz42Us2e0Al
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