Após tentar vários tratamentos, Márcia
D'Umbra, 50, passou por um tratamento experimental com terapia celular em
Israel. 'Era uma situação de total risco', relata. (Foto: Marcelo Brandt/G1)
Salto estratégico na oncologia, a terapia capaz de ensinar células do
sistema imune a lutar contra o tumor deve chegar ao país no ano que vem.
Hospital em São Paulo já prepara infraestrutura.
Por
Carolina Dantas e Monique Oliveira, G1
17/10/2017 05h00 Atualizado há menos de 1 minuto
A estratégia de
editar geneticamente nossas células de defesa para que elas
"aprendam" a combater o câncer parece não estar tão longe do alcance
dos brasileiros. Aprovada nos Estados Unidos comercialmente no final de agosto,
a terapia que promete ser um salto importante na oncologia está na mira de
vários centros no país e um deles reuniu condições para trazer a terapia no ano
que vem -- depois de levar pacientes brasileiros para instituições de
excelência fora do país.
Foi o que
aconteceu com Márcia D'Umbra, de 50 anos, que venceu um melanoma agressivo após
se submeter a este tipo de tratamento em Israel
Enquanto o Inca
(Instituto Nacional do Câncer), público, que tem estudos em cobaias com a
terapia desde os anos 1990, busca financiamento para levar a terapia adiante, o
Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, privado, anuncia que deve
fazer os primeiros tratamentos experimentais no Brasil em 2018. O hospital
separou uma sala especial para isso e já tem pesquisadores nos Estados Unidos
em treinamento. A ideia é ser o primeiro centro de terapia genética do câncer
na América Latina.
O investimento
do Einstein para começar a terapia por aqui está avaliado em US$ 7 milhões
(mais de R$ 22 milhões) -- com US$ 2 milhões (cerca de R$ 6,3 milhões)
destinados a uma sala especial de esterilização. "É uma estimativa
genérica porque, mais importante que a infraestrutura, vão ser os investimentos
em pesquisa", diz Wilson Pedreira, diretor do Centro de Oncologia do
Einstein.
Fora do país, o
custo dos tratamentos para os pacientes gira em torno de US$ 300 mil (cerca de
R$ 945 mil), como mostra detalhamento abaixo.
O G1 entrou em contato com o Hospital Sírio Libanês
e com o A.C Camargo, outros centros de referência no tratamento do câncer no
Brasil, e nenhum dos dois apresentou projetos a curto prazo para implementar
essas novas terapias. "As barreiras são financeiras e tecnológicas",
disse Yana Novis, coordenadora de onco-hematologia do Centro de Oncologia do
Hospital Sírio- Libanês.
A primeira das
novas terapias para o câncer que deve chegar ao Einstein é a TIL, indicada para
o melanoma. Mais para frente, serão disponibilizados protocolos de CART-CELL,
imunoterapia que tem apresentado bons resultados em leucemias. Essas terapias,
no entanto, ainda deverão ser regulamentadas por órgãos reguladores e comitês
de pesquisa.
De qualquer
modo, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, não se trata
de anunciar uma terapia longínqua, fruto de um otimismo um tanto precipitado:
de fato, a imunoterapia genética, façanha que desde os anos 1980 tem sido
apontada como o "sonho" da medicina no câncer, pode ser a diferença
entre a remissão e a cura no tratamento de tumores no país.
Trata-se de um
salto estratégico muito mais que apenas mais uma novidade em tratamentos. A
medicina com a imunoterapia genética tem a possibilidade de fazer com que o
corpo "aprenda" a combater o tumor caso ele volte -- técnica que é
bem diferente de eliminar células cancerígenas por meio de cirurgia ou
quimioterapia.
"Essa é
uma terapia que ficou quente nos últimos anos porque os resultados em leucemia
foram muito promissores", diz Martin Hernan Bonamino, pesquisador do Inca
e coordenador do grupo de câncer da Fiocruz.
"É o mesmo
conceito hoje da Aids, o câncer pode deixar de ser letal e ser controlável. As
terapias estão caminhando nesse sentido", diz Wilson Pedreira, diretor do
Centro de Oncologia do Einstein.
"São as
células-soldado do sistema imune que entram em ação contra o tumor”, diz
Antonio Carlos Buzaid, oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein,
especializado em melanoma.
Não à toa o
número de estudos clínicos que estão investigando a nova estratégia é alto e,
se considerarmos os números de estudos ainda em andamento, a probabilidade de
novas descobertas serem feitas nos próximos anos é ainda maior.
Em consulta
feita no dia 20 de setembro no clinicaltrials.gov, plataforma que cadastra
estudos clínicos em todo mundo, havia o registro de 382 estudos clínicos com
CART-Cell, com 195 deles recrutando pacientes e 75 deles completados.
Como qualquer
nova terapia, contudo, os desafios também são novos -- muitos deles
desconhecidos da oncologia até agora.
As principais estratégias
Disponível
apenas para alguns tipos de câncer, são três as principais estratégias de
terapias celulares: CART-Cell, disponível para leucemia; T CELL
"Engendrado", pesquisada para melanoma e sarcoma; e TIL, usada também
para o melanoma. Confira como funciona cada uma delas:
1 -
CART-Cell
A estratégia da
CART-Cell consiste em habilitar linfócitos T, células de defesa do corpo, com
receptores capazes de reconhecer o tumor. O ataque é contínuo e específico e,
na maioria das vezes, basta uma única dose.
Indicações até
agora: Linfomas
e leucemia linfoide aguda (o câncer mais comum em crianças). Nas leucemias em
crianças, a taxa de sucesso dessa terapia é alta (superior a 50%, em média).
Onde o processo
está mais avançado: Estados
Unidos.
Preço: Os processos são experimentais. Nos Estados Unidos,
no entanto, é possível pagar para entrar no protocolo. Por lá, a terapia sai
por US$ 300 mil (cerca de R$ 945 mil) em média.
2 - T CELL 'Engendrado'
O processo é
parecido com o do CART-Cell. A diferença aqui é que, enquanto a célula de
defesa reconhece antígenos (partícula que deflagra a produção de um anticorpo
específico) na superfície do tumor, o T CELL engendrado é capaz de reconhecer
antígenos mais profundos que são processados e apresentados na superfície da
célula cancerosa.
Onde está sendo
estudado: National
Institute of Health (Estados Unidos).
Indicações com mais
sucesso até agora: Melanoma
(câncer grave de pele) e Sarcoma sinovial (tumor das partes moles).
Estimativa de
custo: Não há ainda.
Os resultados são bem preliminares mas há pacientes aparentemente curados com
essa técnica.
3 - Terapia 'TIL'
O processo
consiste em retirar o tumor do paciente e extrair as células de defesa
(linfócitos T que infiltram o tumor), cultivá-las em laboratório, expandir em
grande quantidade e depois reinjetá-las no paciente.
Ao contrário do
CART-Cell, não há terapia genética e o processo tende a ser mais seguro (embora
ainda seja bem mais complicado que as terapias convencionais).
Onde está sendo
estudada: Israel,
Holanda e Estados Unidos; no Brasil, o Hospital Israelita Albert Einstein
planeja para o próximo ano iniciar os tratamentos dos primeiros pacientes.
Indicação: Melanoma, com taxa de cura em torno de 30%
dos casos
Preço estimado: US$ 200 mil em Israel ( cerca de R$ 630 mil)
Um caso de cura
A americana Ava Christianson (Foto:
Reprodução/Facebook/Bethany George Christianson)
Ava
Christianson já tinha passado por várias rodadas de quimioterapia e estava
pronta para mais uma. Acabou se tornando um dos casos mais repercutidos de cura
pela nova terapia chamada de CAR T-Cell.
O
procedimento, de acordo com reportagem do
"The Washington Post", demorou cinco minutos no Centro
Clínico dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) -- na época,
a garota tinha 8 anos e convivia com a doença desde os 4 anos. A remissão da
doença começou um mês depois.
O rápido
procedimento passado por Christianson é a injeção de suas próprias células T,
parte fundamental do nosso sistema imunológico. Elas foram modificadas para
rastrear e matar as células tumorais.
Christianson
era a paciente teste de nº de 18 do NIH, que ainda é o centro-chefe das
pesquisas sobre o novo tratamento. Os resultados positivos direcionaram à
aprovação pela FDA, órgão similar à Anvisa dos EUA. A Novartis, empresa que
possui a patente, informa que a taxa de remissão nestes casos é, em média, de
83%.
Brasileiros buscam solução fora
Já existem
pacientes brasileiros que viajaram para o exterior atrás de uma cura com a
terapia. Márcia D'Umbra, de 50 anos, sobreviveu a um melanoma agressivo após se
submeter ao tratamento do TIL, em Israel, há 5 anos. "Quando vou ao
consultório, o médico brinca: estou quase achando que você está curada".
"Era a única chance que ela tinha", diz Antonio Buzaid, do Einstein,
que ajudou Márcia a conseguir o tratamento em Israel.
"Depois de
Israel, não tinha mais o que fazer no meu caso. Era uma situação de total
risco", diz Márcia.
Antes da viagem
a Israel, Márcia tentou todos os protocolos clínicos para o tratamento do
melanoma no Brasil. Passou por quimioterapia e por medicamentos de ponta
disponíveis para a condição, como o ipilunumab. A família também chegou a
procurar um tratamento nos Estados Unidos, mas Márcia não correspondia a todos
os critérios para entrar no protocolo.
Com o melanoma
em metástase, Márcia chegou a ter dois tumores no sistema nervoso central.
Cinco anos após a terapia em Israel, ela conta da vida normal que passou a
levar, livre dos tumores que tinham se espalhado por seu corpo.
"Quando eu
fiquei doente, eu tinha metástase cerebral, eu não podia mais dirigir, eu perdi
todo o domínio da minha vida, de tudo. Hoje eu tenho uma vida normal",
relembra.
As dificuldades do tratamento
Apesar de já
estar disponível para algumas condições e se revelar promissor, na prática, o
processo do tratamento da terapia genética é bastante complexo e desafiador.
Por esse motivo, poderá levar algum tempo até que o procedimento esteja
disponível para mais tipos de câncer.
Veja abaixo
algumas das barreiras ainda a serem vencidas:
Efeitos
colaterais: estudo
publicado na "Nature Review Clinical Oncology” alerta para
efeitos colaterais letais da terapia -- como a toxicidade neurológica e o
inchaço no cérebro. Uma outra questão é a chamada "síndrome de liberação
de citoquinas (SIR)", resposta imune progressiva que causa sintomas
semelhantes à gripe, mas com potencial fatal nos pacientes.
Especificidade: para garantir o sucesso da terapia, os cientistas
modificam o linfócito T para que ele seja capaz de reconhecer uma estrutura
específica do tumor. Isso é, ao mesmo tempo, o motivo do sucesso e do eventual
fracasso da terapia, pois caso essa estrutura utilizada para "ativar"
o linfócito não seja de fato específica e, por algum motivo, o paciente tenha a
presença desses antígenos em alguma outra parte do corpo, a terapia perde a sua
especificidade. Resultado: a célula de defesa também poderá atacar células do
corpo saudáveis, uma vez que o linfócito está treinado para reconhecer
especificamente essa estrutura e não o tumor por inteiro.
"Esse é um
processo muito complexo e é por esse motivo que a terapia não está disponível
para mais condições", diz Antonio Carlos Buzaid, oncologista do Hospital
Israelita Albert Einstein, especializado em melanoma. "Não é para todo
mundo porque ela será desenhada para tumores específicos".
"Um estudo
clínico que testou a terapia para o controle de câncer de mama com antígeno HER
2 acabou não funcionando por esse motivo. Uma paciente que tinha um pouquinho
desses receptores no pulmão morreu com o órgão totalmente destruído em
horas".
Precocidade: de acordo com Yana Novis, coordenadora de
onco-hematologia do Centro de Oncologia do Hospital Sírio- Libanês, ainda não
há tempo suficiente em testes para avaliar os efeitos do tratamento a longo
prazo no corpo humano.
"Muito
importante quando se mexe com engenharia genética é tentar entender o que esse
tipo de terapia pode, quem sabe, trazer de impacto no futuro", disse.
"Os
estudos são todos precoces e os pacientes precisam ser acompanhados em um
período de tempo mais longo. Precisamos ver se além de trazer a cura, podemos
trazer algum outro impacto na vida do paciente", explicou.
"Isso
porque quando você está ativando todo um sistema imune para combater um câncer,
você não tem tanto controle sobre ele. É uma preocupação que todos têm com
CAR-T. Pode ser que não aconteça nada, pode ser que esse sistema imunológico
desregulado por nós de uma maneira a curar uma doença, possa causar outra no
futuro”, aponta.
Logística: Atualmente, as terapias celulares estão sendo
voltadas especificamente para cada paciente. "Isso é um desafio logístico
importante, as células têm que viajar, ser modificadas e devolvidas. O reparo
leva de 20 a 30 dias", relata o oncologista do Inca.
Novo x convencional
Na forma
convencional, o tratamento dos cânceres sanguíneos é feito com quimioterapia.
Já no caso de câncer com órgãos sólidos, de acordo com o oncologista Márcio
Paes, pode-se pode fazer uma cirurgia para a retirada do tumor e também usar a
radioterapia.
"Realmente
é um tratamento ainda muito tóxico. Cai o cabelo, causa fraqueza, náuseas. A
radioterapia pode dar uma sensação de queimadura e fadiga", explica, sobre
os métodos convencionais.
Por outro lado,
o médico diz que o mecanismo das novas terapias pode causar um efeito
inflamatório, porque o corpo "luta" contra si mesmo.
"Para os
tratamentos novos há uma expectativa muito boa de que possam causar poucos
efeitos colaterais. Mas há riscos, pode haver reações graves que podem levar o
paciente à UTI. O efeito é uma reação inflamatória grave, mas sem queda de
cabelo, por exemplo".
"É um
tratamento menos tóxico e com uma taxa de resposta positiva maior",
completa.
Regulamentação
A Anvisa
(Agência Nacional de Vigilância Sanitária) informa que não houve um pedido
formal para o uso da terapia genética no Brasil. Com isso, as terapias
celulares seriam aplicadas em caráter experimental – nesse caso, sob a
supervisão do Conep (Comitê Nacional de Ética em Pesquisa), que deve aprovar o
protocolo em que cada terapia será utilizada.
Para deixarem
de ser experimentais, os serviços deverão pedir aprovação na Anvisa e também
passar pela Comissão de Novos Procedimentos do Conselho Federal de Medicina.
Além disso,
mesmo quando aprovadas, as terapias celulares só serão usadas em pacientes que
não responderem aos tratamentos tradicionais, já que se trata de um processo
mais invasivo e extremamente complexo.
Preços e o desafio para o SUS
Os preços para
terapia celulares fora do país estão avaliados em US$ 300 mil (cerca de R$ 945
mil) em média -- um valor que tem por base o preço do transplante de medula
óssea.
Segundo Martin
Bonamino, do Inca, apesar de aparentemente altos, os custos da terapia não
estão tão fora do conjunto de terapias mais modernas para o câncer --
medicamentos como o "Trastuzumabe", por exemplo, terapia biológica
usada para o tratamento do câncer de mama, tem por custo uma variaçao de preço
entre R$ 20 a 30 mil mensais. O medicamento geralmente é usado por 18 meses. Já
a maior parte das terapias celulares em andamento tem potencial para serem
utilizadas uma única vez.
Bonamino indica
que o maior desafio será a chegada dessas terapias no sistema público. Para
serem ofertados no SUS, diz ele, uma alternativa seria a fabricação dessas
terapias no Biomanguinhos (laboratório público ligado à Fiocruz). "É
fundamental que a gente tenha a capacidade de também produzir essa terapia por
aqui", diz.