Buscar vilões ou falhas pessoais que justifiquem a doença pode ser um processo dolorido e prejudicial como o próprio tumor
Lívia Machado, iG São Paulo 08/09/2010 12:00
Tomar uma bebida muito gelada, dormir de cabelos molhados e andar descalço são as negligências pessoais mais comuns para justificar o aparecimento de uma gripe ou resfriado, ao primeiro sinal de coriza e indisposição.
Entender as causas e os porquês do surgimento de qualquer doença tende a ser um processo natural de todo ser humano. No caso do câncer, entretanto, a busca pelo vilão – seja ele um fator natural ou pessoal – pode resultar, principalmente em mulheres, em um potencial fator de culpa, tão prejudicial ao tratamento quanto o próprio tumor.
A medicina evolui rápido e os tratamentos para combater o câncer acompanham tal movimento. Se por um lado a lista dos fatores de prevenção pode ajudar a manter a doença mais distante, por outro, face à comprovação do tumor, essas mesmas recomendações podem adquirir um coeficiente negativo bastante elevado.
No caso do câncer de mama, os especialistas revelam que a obesidade é o fator de autopunição mais recorrente. Achar que o câncer foi provocado exclusivamente pelo sobrepeso ou pela alimentação desregulada não é uma suposição rara entre as mulheres.
“O viés desse pensamento é associar o câncer a um organismo não saudável. Nesse raciocínio, todos os obesos, hipertensos e diabéticos terão câncer. É impossível fazer tal afirmação. O câncer é uma doença celular, começa no pontinho de uma célula, mas não necessariamente representa saúde debilitada”, afirma Elza Mourão, psicooncologista do Hospital Santa Catarina, em São Paulo.
O conceito de culpa, segundo Elza, está fundamentado na educação. Em culturas mais severas e repressoras, esse sentimento é potencializado e ainda mais prejudicial. Ele aparece para reforçar a idéia do que não foi feito corretamente ou dentro da moral do que é certo ou errado.
“Para o câncer não aparecer, o que é estipulado fazer? Não há regras ou ações individuais que sejam capazes de inibir a doença. Os fatores de prevenção ajudam, mas não blindam o organismo. É por isso que muitas pacientes jovens, que praticam atividade física e tem uma vida ativa, também têm dificuldade em lidar com o problema. E não há razões objetivas para justificar os casos precoces.”
Durante o banho, em um exame de rotina, recomendado pelos ginecologistas, Roberta Rocha Nascimento da Costa, 29 anos, sentiu um nódulo na mama. O método caseiro a fez procurar um especialista em Santos, cidade onde mora, mas nada foi diagnosticado. Seis meses depois, o Natal. Ainda com receio da doença e sentindo que o nódulo crescia, Roberta procurou o Hospital A. Camargo, em São Paulo. A época não era propícia para dúvidas e incertezas, mas no final de dezembro de 2008, após uma biópsia, o câncer de mama foi confirmado.
Ao ouvir da médica que o tumor era composto por uma grande taxa hormonal, Roberta logo fez a associação com o uso de anticoncepcional. Nos primeiros minutos da consulta, pensou que poderia ter evitado, utilizado outro método contraceptivo para escapar do dignóstico antes dos 30 anos. A busca por justificativas pessoais que pudessem dar mais clareza a doença, porém, no caso da psicóloga, durou pouco.
“Senti necessidade de entender, questionei minhas atitudes, mas após uma conversa com a médica, ficou claro que em nada adiantaria tentar achar possíveis erros ou ações que pudessem estar relacionadas ao câncer.”
Roberta revela que sua oncologista a orientou a não procurar nenhuma informação na internet na idéia de saciar a ansiedade e dar uma "cara" à doença. “Minha médica deixou claro que o fatalismo que existe na web em nada ajuda a encarar o problema. Deu liberdade para que todas as minhas dúvidas fossem tratadas diretamente com ela. Esse respaldo foi importantíssimo para que eu colocasse foco na cura e não nas causas da doença. Hoje, tenho plena convicção de que isso foi fundamental para o meu enfrentamento e recuperação.”
Vilões invisíveis
O universo da culpa sentimento é amplo e espaçoso. Sempre cabe mais um. Relacionar o câncer de mama às negligências pessoais e físicas é uma das possibilidades. Algumas pessoas, porém, transferem o sentimento para terceiros ou para determinadas fases da vida. “Não é incomum associar a perda do marido, estresse elevado no trabalho ou uma traição ao câncer. Já tive pacientes que encararam o câncer como uma espécie de castigo para excessos cometidos ou falta de cuidados com os filhos e familiares.”
Para a psicóloga, esse processo é mais recorrente em mulheres. “Os homens raramente querem encontrar um motivo para o surgimento da doença. Em geral, eles estão surpresos, principalmente por que não sentiam nada, o tumor apareceu subitamente.”
No câncer, não é possível estabelecer uma relação de causa e efeito imediata, ele é multifatorial.
Deixar de ticar os itens da lista de prevenção diariamente não resulta na sentença da doença. “O conhecimento afasta os riscos, mas não elimina as chances do desenvolvimento de algum tumor”, avalia Maria Del Pillar Estevez Diz, oncologista do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
Na visão da médica, definir um vilão para o quadro satisfaz a ansiedade de achar a identidade do câncer. Ela garante, porém, que é uma maneira muito simplista de olhar para a questão. “É uma chance, apenas. Os vilões não são garantidos.”
O tamanho da culpa pode inviabilizar o tratamento ou até mesmo, gerar o sentimento de desmerecimento. “Em pacientes fumantes, que descobrem o câncer de pulmão, essa matemática pode ser bastante cruel. Se a autopunição for muito elevada, gera a idéia de que ele é o único responsável pela doença, e, por isso, não merece cuidados médicos.”
A lógica perversa da mente nos casos de doenças graves exige um aporte psicológico ao longo do tratamento. A oncologia abriu espaço para uma sub-especialidade, a psicooncologia. O papel da área é trabalhar não apenas o sofrimento inicial e os dilemas irracionais que o câncer pode arrebatar. Mas além dos terapeutas, o diálogo aberto com os oncologistas também ajuda a pontuar a doença, eliminando os excessos.
“O começo é avassalador, mas é preciso que o acompanhamento seja contínuo pelos profissionais da área. Para uma mulher, após uma mastectomia, é muito complicado acreditar que está integra novamente, apta a voltar para a sociedade. Trabalhamos a superação e o enfrentamento do paciente", endossa Elza Mourão.
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