Eles são geneticamente selecionados para nascerem sadios e serem doadores de medula e tecidos aos irmãos. Brasil já tem 20 casos em andamento
Fernanda Aranda , iG São Paulo | 02/05/2013 06:00:00
Maria Clara acaba de completar um ano e dois meses de idade. A curta vida da menina simboliza o início de uma geração de bebês brasileiros que nascem com o propósito de curar.
Elaborados sob medida em laboratórios, eles são concebidos via fertilização assistida com seleção prévia de embriões. Seus tecidos (sangue do cordão umbilical ou parte da medula óssea) são usados, tempos depois do nascimento, em transplantes para tratar ou curar irmãos mais velhos portadores de doenças genéticas.
Além da garantia de que as crianças nasçam saudáveis e não herdem os genes vindos do pai e da mãe associados à doença familiar – como aconteceu com os outros filhos gerados naturalmente – o processo seleciona gametas para que o bebê seja um doador de tecidos 100% compatível com o irmão. Sem a técnica, chamada de diagnóstico pré-implantacional, as chances naturais de estar apto à doação seriam de 25%.
Maria Clara , nascida e programada no Brasil, foi a primeira da América Latina e já mudou o curso da doença sanguínea da irmã mais velha, a Maria Vitória, com 6 anos. Atualmente, são ao menos 20 casais brasileiros que estão passando por este processo com o intuito de gerar um filho para salvar o outro.
Adelino Amaral, consultor do Conselho Federal de Medicina (CFM) e presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, enxerga nestes casos um novo marco das técnicas de reprodução humana.
“Ninguém quer um filho doente. O diagnóstico prévio evita 200 doenças genéticas no bebê. Atrelar esta prevenção à viabilidade de transplante de um irmão é extremamente positivo”, considera o médico.
O início
O país pioneiro na aplicação deste tipo de fertilização foi a Inglaterra, em 2001. Poucos casos surgiram depois. Alguns acabaram na Justiça por conta das questões éticas que cercam o assunto.
Por parte dos médicos e geneticistas, só é preciso cautela para que estes bebês não sejam planejados com o único propósito de servir como “medicamentos” para os familiares.
“Não há uma normativa definida e nem uma discussão intensa sobre o assunto porque ainda são raros os casos de um filho gerado para salvar o outro”, afirma a presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana (SBRH), Mariangela Badalotti.
“Na Inglaterra, pioneira no processo, antes era necessário que cada procedimento fosse aprovado por um órgão regulamentador da fertilização. Agora, esta aprovação prévia foi abolida.”
“A questão que envolve este assunto, na minha avaliação, é: um bebê programado exclusivamente para servir como meio não é desejável”, acrescenta a presidente.
“Mas é importante ressaltar que, nos casos em que os bebês são pensados como possibilidade para doar tecidos aos irmãos, os pais sempre dizem que já desejavam ter outros filhos quando são entrevistados. Além disso, há o ganho para o bebê, que não nascerá com genes associados à doença.”
“Bebês do amor”
Para a mãe de Maria Clara, Jênyce Cunha, a alegria da segunda filha configurou não só o sonho de ampliar a família – algo planejado desde sempre – como o fim das sessões constantes de transfusão de sangue a que a mais velha, Maria Vitória, era submetida enquanto filha única.
O nascimento da caçula possibilitou o transplante de medula óssea à Maria Vitória no último dia 27 de março e o fim da talessemia, doença que altera a produção de glóbulos vermelhos do sangue e resulta em anemias severas.
“Ter um filho é uma dádiva de Deus, não basta só querer, tem que desejar”, diz Jênyce, que já pensa em um terceiro filho para a família.
“Quando, além da vontade divina, a medicina possibilita que este bebê possa, por meio de procedimento tranquilo e nada traumatizante, fazer com que a irmã se livre de uma doença que ela iria enfrentar pelo resto da vida, isso é algo mágico”, diz ela, que refuta o termo “bebê medicamento” e prefere chamá-los de “bebês do amor”.
Maria Clara ficou internada apenas algumas horas para doar um pedacinho da medula, retirado após anestesia e via sucção por seringa. No dia seguinte, recebeu alta hospitalar. A irmã receptora, Maria Vitória, ficou hospitalizada mais tempo pois teve de fazer quimioterapia para eliminar a medula antiga e se adaptar à nova doada pela caçula.
“Elas estão ótimas”, diz Jênyce. “Ter duas Marias sempre foi um desejo, acho irmão a coisa mais deliciosa do mundo”.
Vitória parece concordar. Ela para o que estiver fazendo para brincar com Clara, com abraços “esmagadores de bochechas” e beijos em sequência.
Propósitos
O geneticista Ciro Martinhago, responsável pela concepção da segunda Maria da família Cunha, diz que a experiência bem-sucedida com a garota abriu caminhos.
“O caso das Marias foi o primeiro e eu agora tenho 20 outros pacientes com casos semelhantes que já estão com o processo de reprodução de embriões selecionados em curso”, afirma o especialista, que trabalha em um dos dois únicos centros do Brasil a realizar o procedimento.
A análise prévia dos embriões - indicadas só para grupos de risco - identifica doenças que só seriam vistas no ultrassom ou após o nascimento
“Em geral, são casais que já têm filhos com talessimia e anemia falciforme (outra doença do sangue que pode ser letal), mas o procedimento também é um caminho que desponta para tratar leucemias”, diz.
Segundo Martinhago, de fato, é preciso atenção aos propósitos dos pais que recorrerem à seleção de embriões programados.
“Para mim, a sentença mágica é quando o casal diz que teria um segundo ou terceiro filho independentemente da compatibilidade de doação ao irmão.”
“Mas se é para falar em gravidez por motivos questionáveis ou no peso disso para criança, eu cito o exemplo das muitas mulheres que chegaram até a minha clínica querendo engravidar só por vaidade, porque todas as amigas já eram mães”, diz ele.
Regulação
Por ora, não há nenhuma legislação nacional que regulamente a seleção prévia dos embriões e nem o que fazer com os materiais genéticos gerados que não são usados por não serem compatíveis ao transplante ou portadores do gene associado à doença (descartar, congelar e doar para pesquisa são três possibilidades).
Cláudia Gomes, especialista em reprodução humana do grupo Huntington, avalia que para todo procedimento que mexe com vidas é válida uma regulamentação.
“Mas antes de regular, é preciso o debate com a sociedade e com as entidades envolvidas”, diz.
Para ela, evitar doenças genéticas, já sabidamente existentes na família, é “maravilhoso”.
“E isso já é possível. Acho válido selecionar um embrião para salvar um irmão. Mas acho melhor ainda evitar que um primeiro filho nasça com uma doença, que aumenta o risco de vida e traz riscos biológicos.”
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